Sempre me perguntei como um país considerado por muitos o celeiro do mundo pode desperdiçar tanto alimento.

Assim começou o trabalho de conclusão de curso de Carol, aluna muito dedicada de Biologia.

Recostando-se em sua cadeira, Carol olhou fixamente para a página do Word onde duas linhas martelavam sua mente.

Decidida, pegou a jaqueta e foi dar umas voltas pelas cozinhas da região central de São Paulo.

Num tradicional restaurante da Av. São João, Carol entrou e pediu o menu.
Preços altos para qualquer pessoa, uma outra forma de seleção de público-alvo, evidentemente, a comida, servida em diversas cumbucas e travessas, daria para alimentar dois adultos, com certeza.

Carol torceu o nariz. Umas quatros, a julgar que não conseguiria comer nem um quinto do prato servido.

Procurou pela placa “Visite nossa cozinha”. Lá estava ela. Escondida atrás de uma planta artificial parecida com uma palmeira, ao lado do banheiro masculino.
Avisou ao garçom que queria visitar a cozinha e este a conduziu a um recepcionista sorridente.

Entrando na cozinha, a primeira coisa que reparou não foi a balbúrdia ou os corre-corre de auxiliares em resposta aos gritos do chef, mas sim a quantidade obscena de comida jogada fora.
Comida mesmo, não restos.

Ao questionar sobre o motivo de tanto desperdício, uma cozinheira disse que o regulamento interno não permitia a doação de comida, para evitar algum tipo de ação contra o restaurante.
Carol assentiu. Saiu da cozinha. Pagou a conta.Pediu a comida para viagem.

Do lado de fora, Carol viu um sem-teto maltrapilho, olhos cansados e sem esperança, vasculhar a lixeira do mesmo restaurante que não podia doar uma boa comida aos menos favorecidos.

A fome mata tanto o corpo quanto a alma. É a pior das humilhações.

Carol sentiu-se mal. Os olhos lacrimejaram, não de tristeza, mas de revolta. Deu a comida ao sem teto. Não esperou por agradecimentos e continuou seu caminho.

Pensou entrar em outro restaurante ou lanchonete, mas estava cansada demais pelo dia atribulado no trabalho que angariara enquanto bolsista.

Lembrou-se de um artigo sobre desperdício de alimentos no Brasil, um país em que mais da metade da população vive abaixo da linha da pobreza. Carol deu um sorriso de escárnio. Estava anos-luz de entender esse paradoxo.

O próprio governo jogava fora todos os anos toneladas de grãos vencidos em seus celeiros e fazendeiros estocavam alimentos esperando uma melhor oferta do mercado, muitas vezes jogando fora alimentos aptos para o consumo somente porque o preço estava baixo demais para venda.

Carol colocou as mãos no bolso. Um frio vindo de dentro do corpo ameaçava enregelar seus ossos.
Aguardou seu ônibus passar. Iria para a casa da tia. Na manhã seguinte pretendia continuar sua pesquisa de campo e aquela parte da cidade seria interessante.
Será que pessoas mais humildes desperdiçavam menos?Não sabia, mas pretendia descobrir.

O ônibus chegou. Carol entrou sem se preocupar em olhar no rosto das pessoas.
Já conhecia bem as expressões cansadas e muitas vezes sem esperança de se mudar o jogo da vida algum dia. Escolheu um banco no fundo do ônibus e se sentou.

Enquanto o ônibus seguia seu curso, parando de quando em quando para pegar mais passageiros, Carol reparou que alguns estabelecimentos já começavam a enfeitar suas vitrines com as luzinhas de fim de ano. Em dois meses seria natal.
Uma época de reunir família, comemorar, comer coisas gostosas.
Carol detestava o natal. Sentia-se sempre triste nessa época em que tantos estavam felizes.

Seu ponto finalmente chegou. Carol desceu e foi a passos largos para a casa da tia.
Chegando lá, percebeu que estavam jantando. Sempre jantavam tarde. A tia ofereceu-lhe um prato. Carol recusou e agradeceu. Já havia comido. Mentira. Sequer tocara a comida no restaurante, mas a tia não precisava saber disso.

Não deixou de reparar que a prima de quinze anos colocara uma quantidade enorme de comida no prato, remexeu a comida de um canto ao outro, levantou-se e jogou tudo na lixeira.
A comida não estava a seu gosto.

Carol travou os lábios para não dar uma bronca na prima. Respirou fundo. Pelo menos não precisaria ir muito longe para responder sua pergunta. Os menos favorecidos desperdiçavam alimento tanto quanto as demais classes sociais.

A tia ofereceu-lhe café com pão. Estava meio duro, ela dissera, mas ainda dava para comer. Aceitou. Guardou o pão no bolso da jaqueta, sem que a tia percebesse.
Enquanto lavava a louça, a tia perguntou-lhe sobre os estudos, o aluguel da pequena casa e uma vez mais a questionou porque não se mudava para ficar com ela.
Como das outras vezes, Carol disse-lhe que estudava até muito tarde. O trabalho que lhe dava direito a uma bolsa ocupava grande parte de seu dia, mas garantia-lhe pagar um aluguel barato, já que dividia com uma amiga, e colocava comida na mesa.

Além disso – Carol pensou – não precisava dividir a casa com mais oito pessoas.

Mentalmente pediu desculpas à tia. Ela fazia o melhor possível para manter uma casa pequena, pagar água, luz e alimentar a família com apenas a aposentadoria.

Levantou-se de repente. Iria voltar para a casa. Não precisa mais sair pelos arredores da casa da tia.
Para economizar condução, resolveu andar. Era apenas meia hora de caminhada até sua casa e ela precisava aliviar o aperto que ameaçava roubar-lhe o ar dos pulmões.
Já fazia tanto tempo, mas ainda doía tanto...

Imagens que ela tentara sufocar por anos a fio insistiam em reaparecer, principalmente após começar aquele TCC – "O Brasil e o desperdício de alimentos".
Não que ela alguma vez tenha desperdiçado algum alimento – um sorriso triste alcançou seus olhos, deixando-os embaçados.

Sem perceber, diminuiu os passos. As lembranças agora eram fortes demais, aumentadas pela chuva fina fora de época que ensopava sua jaqueta.

A menininha magérrima, esquálida, com pele cinzenta, brincava no chão de terra batida, enquanto a mãe preparava mais uma bolacha de terra vermelha.
O pai havia chegado da lida depois de um dia inteiro colhendo café. Trouxera um pouco de farinha de mandioca. Que bom. A mãe poderia fazer um mingau com um pouco da água retirada do cocho do cavalo da fazenda do patrão.

Carol fechou os olhos diante da próxima lembrança. Talvez a mais forte de toda sua vida. Certamente a mais marcante.

A mãe serviu duas exíguas bolachas de terra e um pouco do mingau de farinha.
O pai, rosto mirrado, sofrido, curtido de sol, dividiu sua bolacha com ela.
A mãe recusou. Disse-lhe que estava sem fome.
A menininha franziu a testa. A mãe nunca tinha fome – pensou, enquanto mastigava a bolacha com uma careta.

Era uma época como aquela. Próximo ao natal. A menininha engoliu com dificuldade. Olhou para o pai.
—Sabe o que vou pedir de presente para o Papai Noel?
O pai parou a mão que levava à boca no ar.
Foi a mãe que perguntou o que ela pediria de presente.
—Um pão com salsicha.

Carol voltou ao presente com a buzina de um carro que quase a atropelou.
Na poça abaixo de seus pés enxergou o rosto daquela menina.
Lágrimas vieram-lhe aos olhos. Colocou a mão no bolso da jaqueta para pegar um lenço e encontrou o pão amanhecido que a tia lhe dera. Tocou-lhe. Levou-o ao nariz. Aspirou seu cheiro. Guardou-o novamente no bolso.
Lembrou-se novamente da menininha. Sentiu o estômago roncar, mas resistiu ao impulso de comer aquele pão.
Afinal, a gente nunca sabe o que o amanhã nos reserva.
Um dia teria seu pão com salsicha e poderia tirar a menininha da cabeça.
Enquanto isso daria um passo de cada vez e começaria alertando as pessoas que enquanto elas jogam comida no lixo, muitos passam fome.

Carol apertou o passo no mesmo compasso da chuva.
Um novo ânimo reacendeu-lhe as esperanças.
Terminaria seu TCC.