DEZ ANOS

 
- Bom dia, motora!
- Bom dia meu cobra!
Ainda sorrindo com o cumprimento de sempre, o cobrador sentou-se no lugar. Cinco horas e início de mais uma jornada cansativa. Ninguém no ponto. Olhei para o relógio e arranquei.
Não tinha motivo para risos. Não mesmo. Mas trabalhava com Irineu há quatro anos e nos conhecíamos bem. Sabíamos das nossas alegrias e das nossas dores. Uma ele não sabia. E nunca deveria saber.
- Bom dia! Passa na rodoviária?
- Não. Mas o senhor pode ir adiante e pegar o que passa.
Não sei por que hoje a dor é maior. Sei, sim. Sei. Faz dez anos. Meu Deus! Estaria sorrindo, brincando, jogando bola, na oitava série.
- Mais um passo à frente, por favor. Senhora. É. A senhora mesmo, tem um lugar ali, ó.
Estas obras são uma desgraça. Sei que é para melhorar a cidade. Mas poderiam fazer à noite, ou contratar mais pessoas. Iria mais rápido.
- Moço, vou chegar atrasado. Pode me deixar na esquina. Vou pegar um táxi.
- Passa no Hospital Mãe de Deus?
- Seu idiota. Não viu meu pé?
Sou um miserável covarde. Devia morrer da pior forma.
- Vou buscar meu bebê no hospital. Nasceu terça. Um menino.
- Parabéns.
- Pode me deixar na próxima parada?
- Cuidado! Essas crianças nem olham quando atravessam as ruas. Depois, põem a culpa nos motoristas.
Hoje, queria ficar em silêncio, rezando, chorando. Mas preciso trabalhar. Os outros não têm culpa. Nem a nega velha, coitada. Deve sofrer mais ainda do que eu.
- Que absurdo! Poderia não correr tanto. Não vê que não consigo me segurar. Velho tem mesmo é que morrer. Se não precisasse ficava em casa.
- Por aqui. Segure. Isto. Quer ajuda para descer?
- Posso ficar na frente? Roubaram meu dinheiro.
Quantas vezes já a surpreendi olhando a foto. Finjo que não percebo. Sei que, no fundo, ela me condena. Também me condeno, mesmo que a lei dos homens não tenha feito isto.
- Perto da minha casa, numa mansão, moravam primos do Vanderlei Cardoso. Quando aparecia por lá, a mulherada enlouquecia. Minha irmã era uma. Papai fica furioso.
- Olha aquele idiota. Quase bateu na traseira do outro. Viu no que dá. Tava usando o celular.
- Hoje preciso vender dez destes pacotes. Não tenho dinheiro para mais nada.
- Vai desce mais.  Pode fechar.
Meu menino. Tinha nome de anjo: Rafael. As mãozinhas ainda gordas, de bebê. Marieta precisava trabalhar. Fui ao churrasco da firma e levei Rafael. Festa animada, cerveja rolando. Quando saí o pessoal insistiu que eu não estava em condições de dirigir. Deu risadas. Era macaco velho na direção. Vi uns olhares atravessados, mas não liguei. Rafael queria ir na frente, no lugar da mamãe. Deixa, papai, deixa. Só hoje. Deixei.
- Se o prefeito me desse cinco pila por mendigo eu recolhia todos. Não me pergunte como. Fazia uma limpeza.
- Dizem que vão fazer novo shopping ali. Aquela mansão vai ser derrubada.
- Meu time vai jogar, hoje.
- Torci o pé quando descia da cama. Preciso fazer fisioterapia.
- Aumentaram o preço da farinha. É claro que o nosso pãozinho também vai subir.
- Finalmente, estamos chegando. Ainda preciso pegar outro ônibus.
- Mudei de emprego para ganhar mais, mas preciso madrugar.
Caiu um temporal. Deveria ter parado. Não tinha pressa, mas, mesmo assim, corria adoidado. Na curva... meu Deus!
 - Cuidado! Quer matar a gente. Pensa que está transportando porcos.
- Ta cego. Olha o caminhão.
- Agora é que não chego a tempo. Olha o que fez.
- O caminhão tem razão. O sinal era pra ele.
- Rapaz! Vejam, o coitado do motorista ta chorando. Deve ter levado um susto.
- Coitado nada. É pra aprender. Esses motoristas são uns loucos. Não sei como a empresa contrata uns caras assim.
Rafael saltou pelo para-brisa. O veículo barrado por uma árvore. Abri a porta e, mesmo com o rosto sangrando, e procurei meu filho. Não havia nada machucado, aparentemente. Tentei acordá-lo. Foi horrível. O pescoço havia quebrado. Tentei fugir, mas o carro explodiu e fui atingido por um estilhaço.  Acordei um mês depois, no hospital, sem meu filho.
- Chegamos. Obrigada. Tenha um bom dia. Acho que o senhor não está bem. Melhor ir ao médico.
- O que houve motora? Estás bem. Alguma dor? Nunca te vi chorar.
- Tudo bem, tudo bem. Já passou. Foi somente uma lembrança que me machucou. O dia foi pesado.


 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 10/09/2013
Reeditado em 18/09/2013
Código do texto: T4476128
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