A SORTE
 
Minha vida é organizada. Conquistei meus espaços, tenho marido que me ama, filhos, casa confortável. Sou dona de casa por opção. Ivo permitiria que trabalhasse fora. No entanto, escolhi ficar nas lides do lar, cuidados dos filhos e do marido. Estou satisfeita com isto. Nada reclamo nem desejo coisa diferente. A rotina me conforta.
 
Porém... Por que os poréns acontecem? Alguns mudam o rumo de nossa vida, quer trazendo alegria quer trazendo tristezas. No meu caso...
 
Foi assim. Talvez para me distrair, tratando isto como um jogo, um quebra-cabeça, comecei a apostar na loteria. Fazia cálculos, juntava datas, observava números das casas, dos carros, um número que ouvisse em conversa, essas coisas. Divertia-me. Sem pensar em ganhar, em enriquecer. Ivo proporcionava os confortos necessários para nossa sobrevivência. Nada de luxo, mas o essencial para vivermos bem. Mas, como estava contando, a combinação de números passou a me fascinar. Sistematicamente, fazia um joguinho. Até aquela manhã.
 
Fazia as tarefas costumeiras, quando me lembrei de pedir a Ivo que olhasse o resultado no jornal. Já havia feito isto tantas vezes.
 
No entanto, algo mudara. Meu marido abriu o jornal, na página específica e ficou mudo. Olhei-o com atenção. Parecia paralisado.
 
- Ivan, o que aconteceu? Você viu o número? Está aí ?  É mesmo o 2546?
 
Arregalou os olhos, respirou fundo, como se, finalmente, tivesse conseguido respirar. Balbuciou:
 
- Sim, está aqui. E o 2 5 4 6. Você ganhou uma fortuna!
 
Deixei cair a taça que segurava. Barulho e estilhaços sacudiram nossas vidas. Perguntei:
 
- Qual é o valor?
 
- Dois milhões. É muito dinheiro. Mas... – respirou fundo, novamente – não olhei a série. O número está bem aqui, mas a série ainda preciso conferir.
 
Então, ainda, tentando fazer disto mais um jogo de quebra-cabeça, disse:
 
- Não olhe. Vamos sonhar um pouco, brincar de ricos, fantasiar o que poderemos fazer com a fortuna.
 
Vi que meu marido já viajava. Olhar distante, sorriso de quem se extasiava com algo esplendoroso. A viagem dos sonhos começara e, com certeza, repleta das mais luxuosas invenções da mente.
 
Queria ir com ele, no entanto puxei-o de volta.
 
- Vou comprar uma mansão, encher de obras de artes, contratar um mundo de empregados, alguém que organize festas; fazer plástica em tudo que for possível; colocar as crianças nas melhores faculdades; passar temporadas em Paris. Ah! Paris!
 
Ivo não voltava.  Então, pensei em vingar-me. Sei lá se ele me levava ou já havia escolhido bela dama com quem se divertia. Por via das dúvidas, resolvi fazer o mesmo. A primeira coisa: encontrei um garotão para juntar-se a mim nos roteiros imaginários. As noitadas no Lido, as caminhadas pelo Palácio de Versailles, contemplar Paris do alto da Torre Eiffel e dar giros pela Europa. Talvez Japão. A Terra do Sol Nascente me fascina, com seus templos antiquíssimos, jardins, o Monte Fuji e tudo mais.
 
Desta vez, foi Ivo quem me fez retornar.
 
- Acho melhor olhar a série. Não estou gostando nada de sua expressão.
 
Demorei para voltar da altura do Fuji.
 
- É. Melhor mesmo.
 
- Não foi desta vez. O número é o mesmo, mas a série não.
 
Murchei feito bolo abatumado. Tudo ao redor ficou feio. Principalmente Ivo. Precisava dar um jeito na barriga. Os óculos também o deixavam com cara de imbecil. Trocar de marido, no momento, não seria conveniente.



 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 18/09/2013
Reeditado em 18/09/2013
Código do texto: T4487623
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.