Dona Rodriguinha
 
Quem era essa tal de Rodriguinha? Menina com jeito de guri, enfiada no meio da molecada, querendo mandar no jogo do campinho da esquina. Metia-se na escalação dos times, mudava um para lá outro para cá. Escolhia sempre a posição em que jogava. Ora no ataque, ora na defesa. Algumas vezes de goleiro, até que uma bola mal encaixada machucou os peitinhos maturescentes, que ainda não tinham experimentado o primeiro sutiã.
 
Mas quem era essa tal de Rodriguinha? Menina menina, arrumadinha para a matinê semanal com as amigas. Perfumadinha nas tardes dançantes do diretório acadêmico, sempre acompanhada da mãe. Seios durinhos no sutiã folgado, dando voltas no salão com o primeiro pretendente a namorado. Ah, se ele tivesse coragem de falar com papai!
 
E a menina moça subindo na árvore para catar as pitangas maduras lá do alto, não seria a Rodriguinha? A piazada embaixo apreciando o espetáculo. Ela, ávida pelas frutas mais doces e esquecida de que usava aquele vestido curtinho de dois anos atrás.
 
No coral da igreja, a voz macia e afinada, claro que era da Rodriguinha. A carinha mais angelical, luminosa como uma lâmpada de mil watts, não podia ser de outra.
 
E de quem era o caderno de lições anotadas com letra de calígrafo em duas cores? Títulos e subtítulos em vermelho. Textos em azul lavável da caneta tinteiro. Era dela. Mas, na hora do recreio, quem pulava a cerquinha e ia jogar bete com os meninos no outro pátio?
 
Não foi a tal de Rodriguinha que ganhou o concurso de Miss Broto, desfilando com graça e desenvoltura na passarela do clube mais importante da cidade?
 
Quem discursou na formatura das normalistas; e foi a professora mais bonita do grupo escolar? E meteu a boca no prefeito porque ele não mandava asfaltar a rua da escola?
 
Não foi Rodriguinha a primeira mulher síndica de condomínio? A primeira vereadora da capital? A presidente de clube de futebol pioneira, que sem cerimônia invadia o vestiário para dar bronca no plantel quando as coisas iam mal? E não foi ela a primeira esposa a mandar no marido?
 
Diziam os íntimos que foi Rodriguinha que escolheu Estêvão; e não Estêvão que escolheu Rodriguinha.
 
- Vou me casar com você, Estêvão.
 
- Então tá. Vá lá em casa conversar com mamãe.
 
De quem eram as quatro meninas e o gurizinho fazendo arte no quintal? Da Rodriguinha. Do Estêvão também.
 
E quem era essa Rodriguinha que na cama se entregava com paixão e doçura? Mas às vezes invertia os papéis na condução do ato, para espanto do marido?
 
- Estêvão, hoje quem come sou eu.
 
O homem gemendo deixava-se conduzir de costas no colchão e no final desfalecia de gozo. Para o triunfo dessa tal de Rodriguinha...
 
Uma noite ele esmaeceu e não acordou mais.
 
Quem era a Rodriguinha envergando luto no enterro do marido? E mais tarde quem reconheceria a viuvinha que possuiu o noviço no sofá da sacristia? E em seguida, ao lado dele, ajoelhou-se diante da imagem do Senhor para pedir perdão? Mais por ele, que não querendo quebrara os votos de castidade. Ela viúva, afinal, dava para quem bem entendesse.
 
Que mulher, durante décadas, supriu a despensa do orfanato e coordenou a distribuição da sopa dos mendigos nas noites frias de inverno? Quem tantas vezes acolheu as putas grávidas e providenciou-lhes abrigo?
 
Quem, já madura, foi homenageada na associação comercial e recebeu o Troféu Empreendedor do Ano? E no centro espírita, um tanto encabulada, pelo comando bem sucedido de inúmeras campanhas de caridade?
 
E agora, muito tempo depois, quem é a senhora de rosto sereno, trajando um longo negro, rodeada de quatro filhas velhas, o caçula solteirão e careca, uma penca de netos e outra de bisnetos, jazente no caixão, justo quando faltavam cem dias para completar cem anos? Não é a Dona Rodriguinha? 


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N. do A. 1 – Na ilustração, Retrato de Madame Henriot de Pierre-Auguste Renoir (França, 1841-1919).

N. do A. 2 – Este texto faz parte do livro digital Botões de Hibisco Branco e Outras Histórias publicado pela Amazon:

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João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 19/09/2013
Reeditado em 16/08/2021
Código do texto: T4488367
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