E ainda havia a poesia...

Era 2009. O ano da França no Brasil. Para celebrar a data, a obra "O Pequeno Príncipe" de Antoine de Saint-Exupéry (1) era exibida na Oca (2) do Parque Ibirapuera, bem ao lado do prédio da Bienal e do recém inaugurado auditório, todos projetos do “mago do concreto desarmado”, o arquiteto Oscar Niemeyer(3).

(...) Quem sabe Isadora, que, quando criança, sempre se interessou por arte, não teria vindo para apreciar aquelas lúdicas instalações.

Só mesmo na cabeça dele, afinal, trinta e poucos anos haviam se passado, e, para falar a verdade, Joãozinho, hoje, Dr. João Simplício, nem sabia mais se Isadora ainda morava em São Paulo, no Brasil, no hemisfério sul, ou, se, tal qual o Pequeno Príncipe, teria partido em busca de outros céus e mares, de outros folclores, sabores e sotaques...

Mas, o bom Dr. João sabia muito bem que, assim como navegar, sonhar também era preciso... Dr. João, então, adquiriu o seu ingresso na bilheteria e postou-se na longa fila munido da velha câmera analógica Polaroid, que trouxera do século XX, e lá foi para ver se o Pequeno Príncipe lhe sugeria algo, lhe dava alguma pista, ou, se lhe trazia alguma reminiscência daqueles anos coloridos pela presença da pequena Isadora...

Talvez Isadora, àquela altura da vida, não se lembrasse mais do Joãozinho das calças curtas, afinal, eles haviam se perdido no esconde-esconde do tempo, e o mundo, que já não era o mesmo, nunca lhe parecera tão vasto.

Conformado com os desígnios da vida, o bom Dr. João sabia que reencontrar Isadora seria como achar uma agulha no palheiro, um grão de arroz no deserto da Mauritânia, ou um trevo de quatro folhas na vastidão verde da floresta amazônica.

Era melhor aproveitar aquele passeio mágico pelos três andares da Oca, afinal dizem por aí que “águas passadas não movem moinhos” ... Era melhor conformar-se e aceitar que, como tantos outros, aquele pássaro mestiço também tinha batido asas e voado... e Dr. João Simplício não tinha a menor ideia do seu paradeiro...

(...) Isadora, por certo, seguiu por outros caminhos... Oxalá tenha sido feliz e realizado todos aqueles projetos de adolescente.

Enquanto isso, em uma das instalações da exposição, Dr. João juntou-se a uma turba de eufóricos estudantes, subiu uma montanha de espuma, e viu aquela réplica do avião de Exupéry dar voltas e mais voltas em torno de uma imensa bola azul suspensa em um céu sarapintado de estrelas.

Dr. João, já na casa dos quarenta anos, do alto da montanha, enquanto procurava equilibrar-se naquele chão de espuma, acompanhava o ir e vir de uma réplica da aeronave de Exupéri voando em círculo. Fotografou-a repetidas vezes, e, com todos os seus confidentes botões pensava (...) Bem que Isadora poderia ser uma das passageiras, ou, até quem sabe, um membro da tripulação daquela aeronave...

Mas, de repente, uma algazarra de eufóricos estudantes subindo a montanha de espuma fê-lo cair em si, e lembrar-se de que certa feita, quando ainda frequentavam o ensino fundamental, Isadora revelou-lhe o medo que tinha de aviões...

De qualquer forma, valera a pena ter estado ali. Aquilo fê-lo lembrar-se do distante ano de 1978, quando Dona Serafina, a adorável professora de língua portuguesa, dera como tarefa para a nota a leitura de “O Pequeno Príncipe”.

Já em casa, Dr. João parecia feliz pela lúdica viagem que realizara. É bem verdade que ainda não foi daquela vez que reencontrou Isadora.

Outra tarde caía no horizonte distante, e Dr. João, ao longe, de algum lugar ouvia Stairway to Heaven(4)), uma canção da emblemática década de setenta. Naquele momento, a campainha toca novamente.

(...) Quem estaria lá fora. Dr. João pensou em várias possibilidades. (...) Quem teria vindo quebrar a rotina daquele final de tarde.

- Estou indo, só um momento, repetia enquanto corria à janela...

Era o simpático carteiro Cidão. Ele acabara de deixar uma correspondência na Caixa do Correio, e logo em seguida tocou a campainha da casa ao lado, ali, deixou outro envelope, e seguiu adiante carregando uma pesada sacola de lona no ombro esquerdo.

Lá no alto, muito acima das nuvens, como um imenso pássaro ao ar livre, um Boeing prateado voava para leste, na direção da Serra do Mar, até desaparecer em meio a um punhado de diáfanas nuvens branco-acinzentadas.

Dr.João Simplício logo supôs que Isadora também não estivesse entre os passageiros daquele imenso pássaro prateado. Ele sabia o quanto Isadora temia viajar de avião... Ainda assim, ele jamais perdeu a esperança de que um dia poderiam voar juntos, quem sabe, seguir pelos mesmos céus de Antoine de Saint-Exupéry...

Era verão no hemisfério sul, e o sol, com certa indolência, recolhia-se no horizonte distante. Tímida, a lua, como quem nada quer, ia, pouco a pouco, ocupando o seu lugar no céu, e, uma por uma, as três Marias chegavam para fazer-lhe companhia e lembrá-lo de que ninguém, absolutamente ninguém, estará sozinho o tempo todo...

Dr. João fecha a janela na esperança de que amanhã Isadora volte a voar em seus pensamentos de gente grande...

Ainda não foi desta vez que Isadora se materializou, e saiu das páginas de um livro de aventuras.

Assim como o Pequeno Príncipe, Dr. João Simplício sabia muito bem que o essencial era invisível aos olhos, e que, para se criar um céu bastava um sol, uma lua, um punhado de estrelas, um livro, uma rosa, uma escrivaninha e uma boa dose de fantasia... E que , se tudo isso não bastasse, ainda havia a poesia...

FIM

Conto de Zizifraga.

Novembro de 2009.

Notas:

(1) (*) 29/06/1900 Lyon, França (+) 31/07/1944 Marselha , França. Escritor, ilustrador, aviador e filósofo.

(2) Espaço expositivo com mais de 10.000 m2 dentro do Parque do Ibirapuera, cidade de São Paulo, Brasil.

(3) (*) 15/12/1907 no Rio de Janeiro (+) 05/12/ 2012 Rio de Janeiro. Um dos maiores nomes da arquitetura mundial.

(4) Trad. (do inglês) Escada para o Paraíso.

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 04/10/2013
Reeditado em 31/10/2013
Código do texto: T4511339
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