CONTOS NORDESTINOS - Romance – Parte I

Assim conta minha mãe a respeito desse rapaz que retornou para a sua cidade natal, Lagoa do Ouro, no interior de Pernambuco, depois de ter passado oito anos em São Paulo. Bia, como era conhecida minha mãe, ainda se lembra do dia em que ele partiu, pois a cidade inteira comentou a novidade. Ela tinha apenas dez anos de idade na época, não passava de uma moleca que ajudava os pais a cuidar dos irmãos mais novos, mas José, o rapaz de dezenove anos que partira para São Paulo em busca de uma vida melhor, se manteve, de alguma forma, marcado em sua memória de menina. Talvez pelos sonhos que ele ficou de buscar...

Depois de oito anos, Bia havia crescido e se transformado numa linda moça de pele alva e cabelos negros, olhos grandes e expressivos, boca carnuda e sempre revestida de batom, corpo pequeno e delicado, e que caminhava com orgulho e confiança. Alguns rapazes já haviam se acercado dela, filhos de fazendeiros ricos e de políticos renomados, bem como os de berços mais simples, mas Bia, apesar de se engraçar por um ou outro, continuava solteira aos seus dezoito anos, provocando os comentários dos mais fofoqueiros.

José retornou à Lagoa do Ouro, causando mais rebuliços do que sua partida, pois para aquele povo simples, morar em São Paulo era sinônimo de prosperidade. Eles esqueciam, ou nem faziam idéia do que era a luta pela sobrevivência e do trabalho árduo, normalmente em construções de edifícios, numa cidade que crescia a cada dia. Não! Aquele povo não conhecia os obstáculos da grande metrópole, apenas tinha em mente o resultado final: dinheiro e mais dinheiro no bolso antes vazio. Não era de se estranhar que José tenha chamado a atenção de todos, quando retornou.

Ele trouxe na mala presentes e lembrancinhas para os parentes e amigos, ternos finos e elegantes, sapatos de qualidade, um violão e dinheiro. Chegou cheio de prosa e histórias e... ainda estava solteiro aos seus vinte e sete anos de idade, para alegria das moças da região.

Bia logo ficou conhecendo a fama do recém-chegado e ouvia as amigas suspirando de amores por ele.

- José Barros voltou tão bonito... – disse uma.

- Sim, ele é o mais elegante da cidade, atualmente! – decretou uma outra.

- Ele me cumprimentou ainda outro dia... quase desmaiei! – confessava uma terceira.

- Deixem de besteira! – dizia Bia. – Esse metido a paulista pensa que tem um rei na barriga...

- Não me diga que não o achas bonito, Bia? – perguntou a primeira.

- Que nada! Um branco azêdo, é o que ele é!

Bia chegou a encontrar José pela cidade, vez ou outra, e fingia que não o via. Ela realmente o achava arrogante, além do mais, bem sabia que era um boêmio, que passava as noites bebendo com os amigos e fazendo serenatas pelas ruas da pequena Lagoa do Ouro. Muitas vezes, Bia ouviu, de sua cama, antes de dormir, o som de violões e pandeiros que entoavam canções românticas vindas de longe, trazidas pelo vento, e sabia que era José e seus amigos, rua acima, rua abaixo, fazendo serenatas.

- Que sujeito inoportuno! – dizia Bia a sí mesma, irritada.

José, por outro lado, ía aproveitando a fama do momento, jogando o charme para cima das meninas da cidade. Logo estava de namoro com Zélia, uma menina fogosa que tudo fez para torná-lo seu namorado.

Uma tarde, porém, José avistou Bia passeando pela praça e perguntou a um amigo:

- Antonio, quem é aquela dama de vestido verde?

- Aquela é Bia, filha de Manoel Ferreira.

- Bia? Mas ela era uma menina, quando parti...

- Bem, ela não é mais uma menina, com certeza.

- Quantos anos ela tem agora, sabes?

- Que eu saiba, dezoito.

- Ela tem namorado?

- Vou te contar, meu amigo. Aquela se trata de moça orgulhosa e difícil.

- Não diga! Mas, ela tem namorado?

- Não... Ninguém a interessa, pelo jeito.

- Aguarde então, e verás!

José caminhou em direção à jovem que passeava pela praça em companhia de uma amiga. Ao chegar bem perto, tirou o chapéu e cumprimentou com cordialidade:

- Bom dia, senhoritas!

- Bom dia! – respondeu Anabela, abrindo um sorriso assanhado.

- O gato comeu a língua de sua amiga? – perguntou José, referindo-se a Bia, que continuou calada.

- Seja educada, Bia! – disse Anabela, ressabiada.

- Bom dia! – respondeu a moça, visivelmente contrariada.

- Estava observando as jovens damas passeando... querem companhia?

- De certo, que não! – retrucou Bia, depressa. – Podes, isso sim, convidar Zélia para um passeio, tua namorada.

- Bia... – tentou contemporizar Anabela.

- Vamos, Anabela! – disse Bia, retomando a caminhada.

- Desculpe a minha amiga! – disse Anabela.

- Tudo bem, não se preocupe, Anabela!

Assim, as jovens se afastaram e José ficou cismado com aquela menina, sobremaneira.

A partir daquele dia, Bia passou a ver José com mais frequência. Algumas vezes, ele passava em seu cavalo pelos arredores da casa da jovem, ou simplesmente aparecia, de surpresa, nos lugares onde ela ía. Ele rodeava, se chegava, tentava uma conversa de vez em quando, mas Bia sempre o tratava com desdém. As serenatas noturnas passaram a acontecer na rua de sua casa e ela ouvia calada, deitada em sua cama, tentando reconhecer se o que sentia era ódio por aquele rapaz atrevido e indolente, ou o que mais pudesse ser. Muitas manhãs, ouviu o pai, Seu Manoel, dizer:

- Esse rapaz que chegou de São Paulo passa a noite fazendo serenata, incomodando toda a vizinhança. É mesmo um vagabundo!

Bia se fazia calada, incerta do que deveria comentar.

Numa manhã, após a missa, Bia deixou a igreja em companhia da amiga Anabela e seguiram juntas pela Rua do Progresso, rumo de casa. José, mais uma vez, veio ao encontro das moças com um sorriso maroto.

- Bom dia, Anabela! – disse José.

- Bom dia! – respondeu Anabela.

- Será que sua amiga me cumprimentaria, hoje?

Anabela olhou para Bia, com a pergunta no olhar. Um tanto contra a vontade, Bia respondeu:

- Bom dia.

- Estou indo na mesma direção, posso acompanhá-las? – perguntou José.

- Por mim, tudo bem. – respondeu Anabela.

Bia chacoalhou os ombros com desdém e disse:

- Por mim, tanto faz.

Começaram a caminhar, rua abaixo, e José começou a conversa:

- Bia, lembro-me de você, uma menina franzina, sempre correndo por aí. Como estás bonita!

- Obrigada! – respondeu Bia, tentando esconder o rubor das faces.

- Sabes de uma coisa? – interpelou José. – Só não me caso contigo, se teu Deus nao fôr o meu.

Bia interrompeu sua marcha de imediato. Olhou bem dentro dos olhos castanhos de José, surpresa, mas sem palavras. Em seguida, disparou a passos rápidos, atravessou a rua e mudou o caminho de volta pra casa, deixando os outros dois para trás. Ía furiosa e pensando: “mas que audácia desse branco, metido a paulista!”

Ao chegar em casa, tentou esconder a raiva dos pais. Foi logo trocando de roupa e ajudando a preparar o almoço. Entre os afazeres todos, não parava de lembrar o que José dissera, acreditando estar ofendida. Todavia, se pegou olhando pela janela de casa naquela tarde, esperando vê-lo passar a cavalo, mas não o viu; se pegou esperando a serenata naquela noite, mas não a ouviu; e Bia não pôde dormir direito.

No dia seguinte, estava ela num pequeno mercado, quando um menino se aproxima e lhe entrega um bilhete que dizia: “só não me caso contigo, se teu Deus não fôr o meu.” Bia amassou o bilhete com raiva e pôs-se de volta pra casa.

No dia de São João, os moradores da cidade acompanharam a procissão do santo pelas ruas, para depois se divertirem na quermesse que acontecia na praça defronte à igreja, decorada por bandeirinhas coloridas. Bia passeava com as amigas em meio a barraquinhas diversas que serviam comidas e brincadeiras. Não demorou para a jovem avistar José de braço dado com Zélia, no meio da multidão. Um calor subiu-lhe pelo corpo, difícil de se identificar, e se viu irritada, pelo resto do dia.

Dois dias depois, estando sentada no banco da mesma praça a bordar junto com Anabela, Bia avista ao longe, subindo a Rua do Progresso, vindo em seu cavalo negro como breu, a curtos galopes, quase parecendo dançar no ar, vestindo seu chapéu sobre a vasta cabeleira castanha e seu violão às costas, parecendo um guerreiro nordestino, cuja arma não dispara tiros, mas sim, notas musicais; não mata, mas sim, seduz; aquele branco azêdo e arrogante, do qual fugia a todo tempo, mas procurava com os olhos, sem entender o porquê. Diante daquela visão vespertina, Bia tremeu de emoção... Uma emoção tão nova, que não reconhecia direito, mas que fazia seu coração se confundir no compasso e suas mãos perderem o ponto do bordado a seu colo.

José se aproximou, desceu do cavalo, tirou o chapéu, respeitoso, e disse:

- Posso me sentar neste banco, ao lado das senhoritas?

- A praça é pública... – respondeu Bia.

O jovem José sentou-se, então, e colocou o violão ao colo, entoando algumas notas suaves e melodiosas. Entre uma entoada e outra, ía conversando com Anabela sobre amenidades, enquanto Bia procurava disfarçar o tremor das mãos, furando o pano com a agulha a traçar seu bordado. A um certo momento, Anabela disse:

- Bem, vou dar uma corrida até em casa e fazer um cigarrinho de palha. Já volto!

Bia se viu sozinha com José, que continuou tocando o violão, displicente. Depois de alguns poucos minutos, ele a aborda:

- Por que foges de mim, menina?

- Porque me incomodas... – respondeu Bia.

- Mas, por quê? O que te fiz?

- Só porque vieste de São Paulo, pensas que todas as moças estão a cair a seus pés...

José gargalhou mostrando dentes grandes e alvos e Bia o achou belo.

- Não todas as moças, pelo menos não tu... – disse José, ainda sorrindo.

Fez-se um pequeno silêncio e Bia perguntou, um tanto tímida:

- Por que teimas em dizer que... casarás comigo, a menos que meu Deus nao seja o teu?

- Porque de todas as moças que estão a cair a meus pés, tu és a mais formosa e a única com a qual eu casaria. Não vês isso? Não vês que fico a te seguir por todos os lugares, a espera de uma palavra tua, de um olhar teu?

- Mas, então, por que namoras Zélia? – perguntou Bia totalmente ruborizada, mantendo o olhar no bordado, fingindo indiferença.

- Isso não é problema! Termino o namoro agora mesmo. Basta dizer-me que tenho uma chance contigo.

Bia olhou dentro dos olhos castanhos daquele galante rapaz, cheio de conversa, sedutor, sorriso maroto, ainda segurando o violão ao colo, prestes a arrematar seu coração apaixonado de menina e, surpresa, respondeu:

- Pois então, termine o namoro e poderemos conversar...

José levantou-se do banco da praça num pulo, pendurou o violão às costas, montou em seu cavalo e saiu em disparada, sem nada dizer. Bia continuou sentada, com a emoção a fervilhar por dentro de seu corpo. Não conseguia mais se concentrar no bordado, limitando-se a esperar. Após vinte minutos, José retorna a rápidos galopes. Pára diante de Bia, que continuava imóvel no mesmo lugar, desce do cavalo e diz, ofegante:

- Terminei o namoro!

- Não acredito! – disse Bia, rindo-se dele.

- Parei na frente da casa de Zélia, nem desci do cavalo, pois não tinha tempo a perder, afinal, queria voltar a tempo de te pegar aqui. Ela saiu para fora e eu disse que estamos terminados e é isso! – José contava sua hitória com empolgação.

- Tu és mesmo louco! – disse Bia, rindo-se ainda mais.

- Quero que sejas minha namorada, Bia!

A jovem respirou fundo, olhou ao redor, como se fôsse confidenciar um segredo e respondeu:

- Veja bem, meu pai não pode saber...

- Não tem problema!

Naquela mesma noite, José veio com seus amigos pela rua, fazendo suas serenatas, parando defronte a janela do quarto de Bia. Dessa vez, a moça levantou-se da cama devagar, caminhou na escuridão do quarto, procurando não fazer o menor barulho, e abriu uma fresta de sua janela, deixando a luz da Lua, nunca antes tão bela, entrar pela pequena abertura. José, do outro lado da rua, cantando suas canções que falavam de amor, dessa vez canções que falavam de seu amor, percebeu a abertura da janela e vislumbrou o rosto de Bia a espreitar escondida. Naquele momento, ele teve ainda mais certeza de que Bia era a mulher que amava e que, realmente, casaria com ela, a menos que seu Deus não fôsse o dela.

Bia me contou esta história de amor, muitos anos depois, e é ela a minha mãe!