Amor Bandido

Hoje entendi a miséria deplorável que decora a fragilidade do morro. Aceitei a desculpa rasa que explica a ação marginal como alternativa de combate às indiferenças. Implorei por condições racionais de sobrevivência para a homogênea massa carente. Defendi o crime momentâneo e inofensivo que visa suprir necessidades instantâneas, assim como o orgasmo. Gritei meu apoio desafinado aos grupos engajados em combater os tentáculos da pobreza. Concordei que os "abastados" devem manter os flagelados "abastecidos". Afirmei a necessidade de políticas eficazes que favoreçam as oportunidades sociais. Admirei a habilidade inerente dos filhos da exploração e suas bolas de tênis imundas. Condenei o encarceramento prematuro das figuras paternas que roubam pão e leite para suprir o desespero nutritivo das crias remelentas. Arrependi-me do materialismo maçante, aglomerado em espaçosos metros quadrados sem direção. Arremessei ao alto as notas coloridas e amassadas que sustentam meu vício classe média. Troquei palavras de conforto com o corpo bêbado que tentava me convencer sobre suas intenções etílicas. Fuzilei na retina um grupo de broncos fardado, enquanto surravam moleques sem rumo ou culpa. Cantarolei os refrões malandros que, além de acalmar a tensão dos ansiosos, realçam a pertinência cultural produzida no seio da pobreza. Encarei o playboy estufado que insistia em pisotear as tentativas do sem-teto em conquistar abrigo. Resisti à refeição sofisticada, disfarçada em óleo primeiro-mundista, para salivar a criatividade dos ingredientes corriqueiros. Condensei-me no bloco que se amarrotava no transporte público, sob o olhar cáustico do cobrador. Desliguei-me das amarras fúteis que desperdiçavam meu suor adocicado. Abri caminho para o pivete audacioso que corria com trocados inúteis em direção à própria liberdade estomacal. Desliguei o motor de propósito, impedindo o avanço traiçoeiro das viaturas berrantes. Sofri sobre os números que confirmavam a matança aleatória nos guetos sem controle. Despistei o aroma do tráfico, borrifando jatos exagerados dos perfumes trazidos do exterior. Doei vestes de grifes para homens disfarçados de trapo, repetindo o mesmo pano amassado no meu corpo descartável. Enxerguei arte no grafite melancólico que corria acelerado nas portas da lata ferroviária. Desobedeci às condutas exageradas que condicionam o caminho insolente e padronizam o comportamento estático. Reconheci a hierarquia do morro como estrutura organizacional superior à caótica pirâmide política que elegemos. Troquei minha riqueza acumulada por festas intermináveis e pactos de honra vitalícios. Rasguei diplomas decorativos, enquanto iniciava o aprendizado complexo dos que evoluem sobrevivendo. Apresentei-me aos novos familiares, enquanto ouvia trechos de fichas corridas serem pronunciadas com louvor, entre aplausos. Senti minhas pernas quando invadiram minha fala atirando cápsulas de rancor. Foi quando ouvi sua voz calma novamente, sorrindo a esperança acelerada e dizendo que havia feito a coisa certa.

Nesse momento, entre balas perdidas, sirenes estridentes e policiais em fúria, sorri minha inocência e aceitei seu amor bandido.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 17/04/2007
Código do texto: T453472
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