Desculpe, mas minha xícara achou uma caneca melhor.

Ela percebeu que alguma coisa estava errada. Primeiro, as correções dos vocábulos que ele fazia: xícara não é caneca, sunga não é cueca. Coisas que passavam despercebidas pelos diálogos trocados por eles. Ela assentia a puxada de orelha gramatical, pois sabia que àquela altura não havia nada a fazer, a não ser concordar e manter a integridade de alguns poucos anos de união.

Depois, vieram os “adeuses” matinais sem beijo, nem nada. Um aceno de mão e olhe lá, isso quando a chave do carro não era mais importante. Ela via ele tirar o carro da garagem, ouvia ele buzinar duas vezes, que era o sinal secreto para que ela fechasse o portão. Um tempo passado, nem isso. Ele mesmo saía do carro e se dava ao trabalho. Ela só acompanhava esse descaso pela janela da cozinha.

A série de tevê preferida dos dois foi deixada de lado, assim como as conversas na mesa de jantar. Ela passou a não ter vontade de trocar uma palavra sequer e ele aceitava o silêncio, sem reclamar. Quem sentiu foi o poodle branco deles, que vivia amuado, dormindo pelos cantos, dividindo-se em dormir entre as pernas dele no sofá e aos pés da cama dela, em noites aleatórias.

Ele passou a chegar mais tarde. Ela, não pediu explicações. Comia sozinha, assistia filmes, lia seus livros sentada no degrau da varanda, marcando as partes mais bonitas, que antes seriam dedicadas a ele. Quando ela ouvia o barulho do motor do carro se aproximando, desligava a televisão, parava o que tivesse fazendo e se trancava no quarto. Ele, como sempre esporrento, batia portas, derrubava panelas, para sinalizar que havia chegado, o que era indiferente para ela, que já dormia com o poder dos ansiolíticos, na esperança de sonhar que o dia seguinte pudesse ser diferente.

Até que um dia, em plena manhã de um sábado ensolarado, depois de ter dormido demais, ela resolveu dar uma volta. Colocou a roupa mais fresca que encontrou, enrolou os cabelos compridos e cacheados em um coque rápido. Saiu pela porta, sem querer saber onde ele estava, embora o carro estivesse estacionado.

Entrou numa livraria, enquanto fazia malabarismos para tomar seu sorvete de baunilha. Escolheu Nélida Piñon, com as mãos meladas. Pagou, enquanto colocava a ponta da casquinha na boca.

Escolheu uma cafeteria para sentar e ler as primeiras páginas de O Livro das Horas. Ao invés de café, pediu um chá gelado. Aquele calor carioca de dezembro a fez mudar de ideia quanto à bebida. Enquanto folheava, reparou um rapaz sentar à sua frente, na outra mesa. Eles trocaram sorrisos e olhares. Ela notou que ele usava uma pulseira de couro preto no pulso esquerdo. Ele notou que ela tentava se concentrar na leitura. E riu. Os dois riram.

Ele acenou para o garçom e pediu uma caneca de cappuccino. Ela sorriu ao ouvir, lembrando que um dia o seu amor não fazia essa diferença de utensílios e gostou disso, sabendo que o atendente traria uma xícara para ele.

Ele pegou sua bebida e sentou na mesa dela. Ela achou atrevido, mas adorou. Ele observou o esforço que ela estava fazendo para ler e não perder o foco e riu. Ela riu de volta. Ele pegou em sua mão. Ela não retirou a dela. Ele se aproximou. Ela deixou que o perfume amadeirado dele encontrasse com o seu adocicado. Eles permitiram que suas bocas se fundissem e que suas histórias mudassem.

Ela sumiu durante o final de semana. Ninguém sentiu sua falta, a não ser o rapaz que confundia canecas e xícaras, que implorou para ela não ir embora na segunda pela manhã. Ela beijou sua testa e pediu para ele ter paciência, que precisava resolver algo que mudaria de vez a vida deles.

Ela encontrou sua casa vazia. Aproveitou para juntar algumas peças de roupa, sapatos, documentos, colocou comida para o cachorro, procurou um papel e uma caneta. Rodou pela casa inteira. Quando achou, largou a bolsa de viagens cheia no chão, apoiou o papel na pia e rabiscou um bilhete, mesmo com a caneta falhando e o deixou embaixo de uma caneca, bem visível.

O que estava escrito no papel?

O título deste conto.

Bastava essa frase para eles se despedissem.

ARYANE SILVA
Enviado por ARYANE SILVA em 25/10/2013
Código do texto: T4542112
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