BEATRIZ
 
                          
O senhor não vai acreditar, eu sei, mas nada disto foi planejado. Nunca me passou pela cabeça. Quando começou a trabalhar, parecia uma boa moça. Trouxe os retratos dos filhos e do marido. Mostrou-me, falando do amor, do quando eram felizes. Achei interessante. Tinha os cabelos negros, lisos, e uma pele sedosa, limpa e brilhante. Usava pintura discreta, o que a deixava mais bonita. Algumas vezes a surpreendi em frente ao espelho, retocando a maquilagem. 

Mostrava-se amorosa com nossas crianças. O senhor tinha de ver. Fiquei feliz. Ela foi conquistando a todos com seu jeito brincalhão. Cumpria os horários, fazia o serviço sorrindo. Jamais demonstrou contrariedade. Mas quando falava com Henrique, eu lembrava meu pai. Isto nunca consegui entender. Via o rosto do velho. Sentia-o preocupado. Era sempre assim. Mas não consegui decifrar o que queria me dizer. Pobre papai. Sofrendo, querendo me alertar, e eu surda. Como poderia entender, não é mesmo?

Fico me lembrando do dia do nosso casamento. Henrique jurando me amar até que a morte nos separasse. A morte nos separou, é verdade, mas o amor, este morreu bem antes. Quando apresentou Beatriz... o senhor fica admirado? Vejo isto nos seus olhos. Mas foi ele, sim senhor. Ele que a trouxe para nossa casa.  Trabalhara na residência de um amigo, onde a conhecera. Não digo que não desconfiei. Mas ele ponderou, quando manifestei minha desconfiança, que isto não se justificava, que a moça era casada, tinha dois filhos, amava o marido, era gente decente, honesta. É. Também devia ter me alertado com tantas qualidades, mas não.

Nem o olhar triste de papai, que Deus o tenha, me fez abrir os olhos. Beatriz foi tomando conta. Não vou dizer que eu não gostava. Gostava sim. Ela prestativa. Deixa que eu faço, Carolina. Deixa que eu levo, deixa que eu cuido. Quer um chá? Descansa, pode ficar tranqüila. E eu fiquei.

E, além de tudo, cega. O senhor sabe que não vi nada, nada mesmo? Quando me comunicou que estava grávida, a criança já ia nascendo. É burrice demais. Até aí, eu sorria, contente com a serviçal que tinha. Sabe que somos padrinhos do menino? Eu e Henrique, claro. Tinha de ver sua faceirice. Chegava do trabalho e, antes de me dar um beijo ou beijar as crianças, ia brincar, fazer festinha, com o afilhado. O afilhado.

Passaram-se dois anos. Foi aí que ele viajou. Conforme o combinado, fui visitar minha irmã, na cidade vizinha, com as crianças. Na véspera do dia em que ele retornaria, decidi voltar, pensando em dar uma geral na casa, mudar algumas coisas. Beatriz de folga. Queria fazer uma surpresa. Mas fui surpreendida.

Enquanto as crianças ficaram correndo no jardim, fui ao meu quarto. Na minha cama, eles dormiam, como dois inocentes, nus, um nos braços do outro. Não tive tempo de pensar, juro. Um jato de sangue, como que extrapolando, saltando das veias, nublou meu raciocínio. Mesmo sem pensar, peguei o revólver, que ele deixava no criado mudo.

Ele nem acordou. Não deu tempo. Tiro certeiro. Mas ela ainda tentou explicar.  Eu a vi mais linda, nua, com os cabelos em desalinho. Parecia uma atriz. Fez-me ferver de raiva. Precisa castigá-la, deixá-la viva. Mirei-lhe o rosto. Nunca será a mesma.

Depois, botei as crianças no carro e dirigi até aqui. Toma, delegado. O revólver era dele. Comprou para se defender.

Aqui está o endereço dela. Pode avisar o marido.     


 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 27/10/2013
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