Esqueceram de perguntar.

Indivíduo adulto, masculino, idade presumível 20 anos. O esqueleto foi remetido à França, a fim de ser examinado no melhor laboratório do mundo. Apresentava apenas uma rachadura no crânio. Testes e mais testes, viagens de representantes do povo, pagos obviamente por nós, contribuintes, manchetes em todos os jornais.

“Polícia aguarda confirmação da identidade do esqueleto.”

E o assunto ficou em pauta dois meses.

-Deve ser um andarilho, dizia Manoel, o quitandeiro.

-Isto é desova, coisa de gangue! Comentou Onofre, o Sargento aposentado

-Será que não é coisa dos iraquianos? Perguntou Patrícia, a filha loira de olhos azuis do dono da locadora.

O comentário era um só. Fizeram apostas e bolão de palpites.

D. Elza cuidava do seu jardim de rosas, quando ouviu no rádio que o resultado do exame havia chegado. Após inúmeras análises, não descobriram a identidade do cadáver. Balançou a cabeça, resmungou sozinha e foi botar água no fogo pra ferver.

-Novidade, gastaram dinheiro à toa! Por que não me perguntaram?

Olhou para cima do Itagé e o seu avô na foto parecia lhe sorrir condicente.

Era menininha e a sua mãe havia falecido, seu pai não podia criá-la e seu avô foi buscá-la. Nas noites de frio, à beira do fogão de chapa, muitas histórias ouviu. Uma delas lhe chamava mais atenção: a história dos bugres que atacavam as fazendas.

Seu avô foi o primeiro branco a se instalar na região. Os confrontos com os bugres eram constantes, tanto que seu avô morava somente com seus empregados e sua avó ficava na freguesia. Na época, Martinho Bugreiro ganhava muito dinheiro para matar os bugres das fazendas da região, mas seu avô, um homem muito bondoso e paciente, alimentava a esperança de que um dia eles não mais atacariam.

Em sua lida, procurando uma rês desgarrada, viu caído junto a uma malha de Gravatá, um bugre sangrando pelas narinas. Num rápido olhar, viu que o mesmo havia sido mordido por cobra. Mal havia levantado o pobre diabo, e uma Urutú-Cruzeiro corria pra longe. Não havia dúvida, o bugre iria morrer. Tomado por sentimento de compaixão, coloca-o sobre a sela e se dirige pra casa.

-Eupídio! Corre cá, homem! Este miserável foi mordido por uma cobra.

O velho Eupídio era um exímio benzedor, e se benzedura faz efeito até hoje não se comprova, mas a verdade é que com duas benzeduras o bugre começou a melhorar. Mesmo fraco que nem gado no inverno e ressabiado que nem cusco em dia de trovoada, em pouco tempo acostumou-se e já ajudava nos afazeres da fazenda. Disse ser filho de Jundiaara e Natiriri. Era o filho do chefe de uma das tribos mais perigosas do planalto.

Enquanto ele convalescia, haviam matado um peão e roubado muitas cabeças de gado.

O tempo passava e o ataque dos bugres se acentuava.

Era próximo de Natal, todos já planejavam a viagem. Tinham que sair ao amanhecer, para pernoitar em lugar seguro e chegar na freguesia ao anoitecer do quarto dia.

Todos já estavam dormindo, quando a cachorrada começou a ganir desesperadamente. A porta da casa foi derrubada de supetão, gritos e berros dos bugres e moradores. A escuridão da noite foi cúmplice da chacina. Sete homens degolados sem levantar da tarimba.

O avô de D. Elza, e antes que seja tarde declino o nome, Coronel Celso, sentiu que alguém lhe puxava pela abertura da parede. Era o bugre. Correndo entre as árvores e línguas-de-vaca que lhe cortavam as pernas, chegaram a beira do rio. Exausto o Coronel Celso não conseguia dar mais um passo. O bugre então carregou-o para a outra margem.

O dia amanhecia, quando acordaram com gritos na margem oposta. Um grupo de bugres agitava suas machadinhas cortando o ar. Como atingido por um raio e sem titubear, o bugre dispara em direção dos guerreiros. Coronel Celso não conseguia entender. Viu o índio agarrar o primeiro, derrubando e tomando-lhe a machadinha, e num entrevero de lobos loucos, a turba endemoninhada caiu em cima do bugre de vez. Ele, num pulo de gato, corre novamente pra dentro do rio. Coronel Celso vê uma machadinha voar e atingir a cabeça do índio. Ouve o som seco e o corpo caindo vagarosamente na correnteza.

Talvez honrados com tanta coragem, os guerreiros dão meia volta e batem em retirada.

D. Elza volta pras rosas resmungando:

- Por que eles não me perguntaram? Eu lhes teria dito que era Uiratanã.