Elas Sempre Querem Mais

Ouvia atentamente ao que ela dizia e de uma hora pra outra suas palavras ganharam um tom diferente, e ao reparar apenas os seus olhos percebi que eles contradiziam cada palavra que ela pronunciava. Fiquei na dúvida. Será que tudo que dissera era mentira, balela, ou só as últimas palavras. Começou contando que fora enganado, injustiçada pelo sacripanta do ex-marido – era assim que ela se dirigia à ele, inclusive pessoalmente – que teria dito à ele sobre um dinheiro que lhe devia, mas que não pagaria porque não estavam mais casados. Absurdo! Disse ela e disse eu também ao ouvir isso. Entretanto quando suas palavras começaram a mudar o tom e seus olhos querendo dizer o contrário, o seu discurso mudou. Em todo o seu tempo de casamento, ela nunca trabalhou, sempre viveu as custas do marido, atual vereador da câmara. Isso eu sei porque ele me contou. Mas ele dissera que ela trabalhara ajudando nos serviços da igreja e que isso lhe dava alguns trocados, nada suficiente para comprar os vestidos mais finos da época. E agora nesse nosso encontro disse ela também que trabalhou no banco e que o dinheiro que ele a devia era um empréstimo que ela fez.

No dia seguinte fui ter com Castilho, o ex-marido. Conversamos sobre vários assuntos. Comentava ele sobre os vereadores da câmara, os projetos estranhos de cada um, os discursos sem eloqüência, sem nexo tentando convencer os senhores da casa à votar, coitado deles, ria Castilho sozinho. Deixei que ele falasse para que quando fosse minha vez, ele me escutasse atentamente, sem interrupções, o que seria difícil para um parlamentar. Quando falei que tivera uma conversa com Sofia – ao ouvir esse nome, Castilho mudou o cenho, a expressão, enfim seu corpo estremeceu, mesmo que não fosse da vontade dele reagir assim – e que tinha contado sobre sua dívida, chamando-o de caloteiro sacripanta, ele me objetou dizendo que era uma calúnia, uma desfaçatez como os políticos gostam de dizer. Pedi para que ele parasse com os impropérios e que ainda não tinha terminado. Contudo vi nele o rosto da felicidade quando comentei que percebi nos olhos dela a mentira, a contradição, a insanidade – completou Castilho. Mas o que eu queria saber e o motivo do meu encontro com ele, era da onde ela tirou dinheiro pra empresta-lo e por que e também para quê. Castilho ouviu minha pergunta, se concentrou e pareceu disposto a esclarecer.

Tudo começou quando abriu uma casa de jogos aqui na cidade. Sofia comemorou, pois só podia jogar quando ia pra Europa, ela era uma viciada nisso e ainda portadora de uma sorte que nunca vi. No dia da inauguração ela se arrumou toda e antes de sair eu disse: Você não vai! Ela ficou sem resposta, sem reação, mas mesmo assim respondeu: É claro que eu vou. De jeito nenhum, você acha que eu ganho pra você sair jogando e perdendo por aí, ta pensando que eu ganho pra dar pra você gastar como e quando quiser. Sofia sentiu o peso das palavras e o peso de ser submissa. Ele estava certo, infelizmente – pensava ela. Se eu ganhar, eu te dou setenta por cento, prometera ela. Quem me garante que irás ganhar? Eu vou ganhar e vou trazer dinheiro e quiçá ganho uma dinheirama, e assim ficar independente, disse ela com olhos brilhando. Não me faça rir Sofia.

Deixei que a fosse, quem sabe ela estivesse com sorte, como nas outras vezes. Fiquei ouvindo música e imaginando o semblante da derrota estampado em sua face quando ela chegar. As horas se passaram e quando eu estava perto de dormir, ouvi a porta mexer e era ela. Olhei direto pro seu rosto e nele não vi nem alegria nem tristeza, mas me surpreendi quando ela disse: Ganhei cem mil contos de réis! Fiquei pasmo, inerte, não sabia se ria ou chorava. Levantei-me e fui beija-la. Beijamos como há muito não nos beijávamos. E depois fui seco e perguntei: Cadê o dinheiro? Irei pega-lo amanhã, foi o dono do cassino que me prometeu para a minha segurança. E que horas você irá buscar? Perguntei mais uma vez ansioso e agitado. Lá pelas onze!

Fomos dormir e nos meus pensamentos ressoava uma voz dizendo que eu devia chegar antes dela e pegar todo o dinheiro, afinal eu saberia administra-lo melhor, caso contrario ela iria gastar com futilidades – ah mulheres com dinheiro é um perigo. A noite custou a passar. Quando deu sete horas, levantei-me e fui pra câmara, Sofia ainda dormia. No caminho, pensei sobre minha ida ao cassino, de como eu iria resgatar esse dinheiro por ela. Poderia dizer que ela não pôde buscar, ai digo que sou vereador e ficará mais fácil. Mas antes tenho que ir pra câmara e quando for dez e meia passo lá.

Quando a bendita hora chegou, pedi ao Fonseca que dissesse ao presidente que fui resolver problemas extraordinários. Fui em passos rápidos ao cassino que estava localizado na praça central. Chegando lá, pedi para falar com o dono e me deixaram entrar. Encaminharam-me até a sala do dono que se chamava João Neves e era um senhor simpático. Apresentei-me: Bom dia, sou o vereador Mário Castilho. Bom dia vereador, a que me deve a sua visita? Contei que viera buscar o dinheiro que minha mulher ganhou no jogo e que ela não pôde buscar por motivos de saúde. O dono ouviu e foi até o cofre buscar o dinheiro. Aqui está a sua parte – 30 mil contos de réis. Eu contei e só tinha trinta mil e falei que havia um engano e que eram cem mil. É tudo que tem aqui referente ao prêmio de Sofia Castilho. Não pode ser, disse eu. Ela me enganou, veio antes de mim. Saí da sala sem me despedir, estupefato.

Fui até em casa e lá tinha um bilhete de Sofia, dizia que tinha ido pra Europa e que voltaria logo. Os tempos passaram, Sofia não voltava até que uma noite ela apareceu. Disse que tinha tirado umas férias. Perguntei pelo dinheiro e ela respondeu que ainda sobrava trinta mil. Não falei nada e deixei o tempo passar, até que um certo dia ela me aparece dizendo que quer o dinheiro que ela me deu, mas agora dizia que tinha emprestado. Eu falei que não daria, e que ela tinha mentido dizendo que eu ficaria com a maior parte. Sofia fez um escarcéu e por fim pediu separação.

Ouvi a história intrigado, não interrompi sequer um momento, mas a história estava em aberto e perguntei: Que fim deu isso? Ah meu caro, você não tem nem idéia.Nos separamos oficialmente, e soube que ela tinha gasto todo o dinheiro e até hoje me cobra esse dinheiro e ainda por cima vai reclamar contigo dizendo que foi enganada. Mas o que eu não entendo é ela querer ficar com a maior parte do dinheiro, sendo que nunca neguei nada pra ela. Nem queira entender Castilho, mas acho que ela queria gastar o dinheiro sem consentimento, sem o peso de estar gastando um dinheiro que é seu. Muito complicado, mas parece que elas sempre querem mais.

MR 09/07/05

Miguel Rodrigues
Enviado por Miguel Rodrigues em 27/08/2005
Código do texto: T45558
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