*O HOMEM QUE DESVIAVA*

Alexandre era um cara responsável. Pai de Rafael, marido de Julia, filho único de dona Selma. Estava sempre disposto a ajudar. Tinha habilidade em consertar carros, luminárias e amizades. Era ele quem acalmava os nervos da galera quando a discussão esquentava. Ele que trocava as lâmpadas queimadas da casa da mãe viúva. Ele que levava o sogro ao médico. Ele que nas horas vagas distribuía ração para cães abandonados.

Alex, apelido obrigatório, não tinha muitas reclamações sobre a vida. Se dedicava de corpo e alma a fazer o bem. Mais corpo que alma. Alex estava bem acima do peso, mas nem isso tirava seu sono. Bonachão e boa praça. Sabe o tipo? Então, assim era.

Trabalhava em uma imobiliária no centro da cidade. Cidade quente, sem chuva, sem sombras, tomada pelo asfalto. Ia cedo para o serviço. Perdia mais tempo caçando vaga para deixar o carro que rodando pelo caminho. Ele morava pouquíssimos quilômetros da firma, mas a gordura de seu corpo era desculpa para não encarar uma caminhada.

Chegava ao escritório arfando. Dia sim, e no outro também, o elevador estragava e Alex encarava três andares como quem vê os portais do inferno. Vermelho, suando e sem dignidade alguma, entrava na sala, se jogava em sua cadeira e dava início ao dia de multitarefas.

Funcionário exemplar, além de ser responsável por várias contas de aluguel e cobrança de condomínios, tomou para si a obrigação de descer até a lanchonete da esquina para comprar diariamente as guloseimas do escritório. Valia tudo na hora do lanche. De pastel a picolé. E Alex era criativo, nunca repetia o petisco.

Em sua simplicidade, se dizia um homem completo.

– Pra que eu quero mais? Tenho uma mulher linda, um filho cheio de saúde e inteligência, uma casa com piscina e uma sogra que já já bate as botas, ria Alex até engasgar durante o discurso no cafezinho, quando os colegas agradeciam as gentilezas do gordo simpático.

Apesar de todas as alegrias que a vida pode proporcionar a um bom pai e cidadão exemplar, Alex se incomodava com uma coisa: ele era um cara que desviava.

É exatamente isso. Mesmo com todo aquele tamanho, Alex precisava andar sempre, ou quase sempre, em zigue-zague. As pessoas simplesmente não desviavam dele . Se estava subindo a escada escorado no corrimão para se equilibrar e manter o fôlego, lá vinha uma horda descendo os degraus que simplesmente não saia da frente e o obrigava a soltar o corrimão e deixar todo mundo passar.

Se andava pela rua, quem quer que viesse em sua direção, ia reto, não desviava. Alex se obrigava a dar um passo para o lado.

Era um problema. Pra muita gente, uma bobagem, para Alex, um problemão.

Qualquer duzentos metros de caminhada se transformavam automaticamente em dois quilômetros de tanto que ele desviava das pessoas.

Quando tentava não desviar era de praxe levar esbarrão. E com ele sempre um puxão de orelha:

– Ei, olha por onde anda...

Isso sem contar as diversas vezes que iam lanche, sucos, cafés e respeito para o chão. Tudo porque ele não desviou.

Outro dia, andando apressado pela calçada, não desviou de uma senhora distraída e a mulher bateu com toda força em seu peito. E ainda xingou muito Alex. O homem ficou sem palavras. Não pediu desculpas porque afinal não era culpa dele. Ficou parado olhando a mulher indo embora e para sua surpresa, a tal senhora seguiu caminho desviando de tudo e todos. Naquele momento Alex se perguntou quase em voz alta: por que sempre eu que tenho que sair da frente?

Aproveitou o intervalo do almoço para observar o trânsito, os pedestres, o movimento das ruas. Dividiu a humanidade em dois tipos: os que desviam e os que não desviam. Passou a admirar os que não desviam. Mostravam mais confiança, elegância, força e determinação. Enquanto os outros que saiam da frente geralmente andavam de cabeça baixa, quase cansados. Disposto a fazer parte do mundo dos fortes, bradou a si mesmo:

– A partir de hoje não vou desviar. Venha o que vier, seja quem for, eu não desvio.

Fez o sinal da cruz para garantir a seriedade do juramento.

Manteve a rotina de ir de carro ao trabalho, achou vaga perto da entrada. Ninguém passou por ele. Surpreendentemente o elevador estava funcionando. Desceu no andar do escritório, foi até sua mesa, e nada de precisar desviar. O dia começava bem.

Hora do lanche, Alex se preparou para ir até a esquina pegar as coxinhas de galinha tradicionais da quinta-feira. Confiante, desceu pelo elevador, atravessou a porta grande do prédio e nem viu que a rua estava praticamente vazia.

Feliz em não precisar desviar de ninguém, Alex caminhou tranquilamente. Nem percebeu que o local estava cercado pela polícia. Naquele momento, bandidos estavam fugindo de um assalto a um banco ali próximo. O centro da cidade estava nervoso. Policiais do esquadrão antibomba gritavam para todos se afastarem, a rua fora interditada, polícia de um lado, ladrões de outro. Sirenes, confusão.

Quando se deu conta do que acontecia Alex saiu correndo, nessa hora começou o tiroteio.

Alex dobrou a esquina para o lado errado e acabou de cara com os bandidos. Ficou paralisado. Sem mexer um músculo, apenas ouvia os gritos dos assaltantes encurralados.

A primeira reação foi pedir “peloamordedeus” que o deixassem ir, mas Alex lembrou que agora ele era forte, destemido, um homem que não desviava de nada. Não cederia um passo, um centímetro para o lado.

Não teve medo. Manteve o juramento: morreu com uma bala na cabeça porque não saiu da frente.

FIM