UM CASO DE AMOR (LENA E NED)

UM CASO DE AMOR (LENA E NED)

Ned ama Lena e declara-o aberta e repetidamente, escrevendo nos muros da região ”Lena, eu te amo, Ned”. A frase chama-me a atenção, tanto por sua aclamação constante, como pelas datas postas ao pé de cada uma, ratificando o tempo em que persiste o sentimento.

Curioso, ando pelo bairro buscando a locução expressiva; interesso-me pela cronologia das datas, vindas de há três anos, sendo a mais recente de apenas trinta dias.

Por aqui se aglomeram grandes galpões onde funcionam fábricas e comércios atacadistas. Seus longos muros se expõem a pichações e a colagem de folhetos. E entre a profusão de tantos ditos e panfletos destaca-se a declaração de amor de Ned: vívida, completa ou apagada em partes, suas cores diluídas pelo tempo ou recobertas por uma fraca mão de cal.

O fato é que Ned se esmera em reafirmar seu amor, expondo-o aos olhares de todos, escrevendo-o nas paredes fuliginosas das fábricas, nos muros da escola, da igreja e até mesmo no muro fronteiriço ao cemitério...”Lena, eu te amo”.

Penso quem será essa Lena agraciada por um amor tão insistentemente manifesto. Será ela uma moradora desse bairro, ou a operária de qualquer das inúmeras indústrias locais, que transita pelas ruas ao longo das paredes nas quais Ned a homenageia.

Empenho-me em encontrar alguém que tenha informações sobre Lena ou Ned. As pessoas nada sabem, nem sequer observaram a frase com que Ned ajuda a poluir muros e fachadas. Querem saber o motivo do meu interesse: ”O senhor é da polícia?... “ Esses dois são suspeitos de que?..” Explico que não sou tira e sim jornalista interessado em entrevista-los para o meu jornal, numa matéria sobre o romantismo nesses tempos modernos, coisa assim...

Ouvindo-me muitos se desinteressam, outros se habilitam para a entrevista: “Tenho uma história e tanto, quer ouvir?” Uma mulher conta que encontrou uma faixa com os dizeres...”Sabe... a faixa estava numa rua do Bairro das Mansões, derrubada pelo vento... eu trouxe para forrar a casinha do cachorro... o senhor quer ver?...”Agradeço, despeço-me.

Aproveito a dica do Bairro das Mansões e para ali me dirijo. Encontro casas de construções recentes, modernas, com terraços e esmerados jardins. Nada de faixas, nem pichações recentes ou antigas. Os muros recobertos de pedras ou de viçosa hera, são incólumes.

Numa praça ensolarada entro numa sorveteria elegante, deserta àquela hora. Peço um refrigerante e puxo conversa com o garçom, contente por ter com quem conversar naquela hora tediosa. “Por aqui não é tão fácil alguém pichar”, ele explica. “Os moradores têm vigias, as noites são patrulhadas. Faixa, a prefeitura manda tirar bem depressa”.

Parto desiludido. A interrogação sobre Lena e Ned persegue-me intrigante.

Coloco um anuncio nos classificados, convidando-os a procurar-me por e-mail. Surpreende-me uma mensagem com um breve recado de Lena. Ligo, identifico-me. Lena demonstra contrariedade e pouca disposição para dialogar. Insisto e ela aceita vir a meu encontro. “Na redação do jornal, não vou,” afirma. Sugiro um encontro no restaurante de um shopping. Ela, relutante, concorda, : “Não leve gravadores”, pede. Marcamos o horário, descrevo-me para seu reconhecimento. “Nada de gravadores, ela repete”, desligando.

Chego ao encontro marcado antes dela e aguardo um bom tempo a sua chegada. Vejo quando se aproxima procurando-me com o olhar. É jovem, um tipo pequeno de mulher, que compensa a pouca estatura usando sapatos de saltos muito altos. Traja um vestido bem talhado; nas orelhas, pulsos e dedos usa joias verdadeiras, um pouco ostensivas, talvez... Seus olhos, possivelmente castanhos, são encobertos por lentes de contato verdes. Não é uma beldade, mas é atraente e abusa do dispendioso. Senta-se à minha frente, cruza as mãos sobre a mesa. Os anéis cintilam nos seus dedos encravilhados. Parece pouco à vontade, enquanto a observo em silêncio. Seu olhar fugidio percorre o ambiente para escapar do meu. Sinto-a, porém, alerta, atenta, como uma fera prestes a saltar.

“Porque me tem procurado?”, pergunta, passando os dedos na madeixa aloirada que lhe cai na testa.

“Vou explicar-lhe”, respondo, indicando-lhe o garçom que espera nosso pedido. Escolhemos coquetéis dos quais ela parece entender bem. Enquanto aguardamos o serviço, falo do meu interesse despertado pelas declarações de amor, tão insistentemente feitas por Ned.

Ela me ouve, olhos semicerrados, lábios franzidos, num rito de impaciência.

Somos servidos, Lena toma, sôfrega, um gole da bebida. Atento aos seus gestos, eu provo do meu coquetel, elogio a qualidade da mistura, pouso o olhar no seu rosto tenso, esperando que relaxe.

“Não posso compreender o motivo do seu interesse”, ela diz, vagarosamente, como se escolhendo as palavras. “Não quero falar sobre isso; aceitei encontra-lo unicamente para pedir que esqueça o assunto; é tolice querer envolver-me num caso já há muito passado...” Interrompo-a dizendo que não pode ser tolice um amor tão insistido, mantido e declarado de forma tão pública e por tanto tempo.

Ela abre a bolsa, tira e acende um cigarro. Tira apenas uma baforada; lembrando-se da proibição de fumar-se naquele local, apaga-o nervosamente. Suas mãos tremem, ela tenta contê-las; seus olhos se esquivam dos meus. A todo custo evita realmente discutir o assunto. Arredia, mantem-se na defensiva e encerra-se num teimoso silêncio.

Finalmente, diz como num murmúrio: ”Por favor, ajude-me. Sou uma mulher casada, falar nessa história pode destruir-me; se Ned procura-lo, faça-o prometer não comprometer-me, prejudicando minha felicidade. Quero que ele me esqueça”.

Surpreende-me a alusão do casamento. Observando seus magníficos anéis, escapara-me a aliança, um delgado fio de ouro disfarçado entre as joias.

Lena se mexe, inquieta. Os braceletes tilintam no mármore da mesa. Sorve até o fim o coquetel. Ofereço-lhe outro; ela recusa. Levanta-se, demonstrando que o assunto está encerrado. Peço a conta, ofereço-lhe uma carona para onde precise ir. “Obrigada, ela diz, meu motorista aguarda-me no estacionamento”. Sem mais palavras, estende-me a mão e parte, equilibrando-se graciosamente nos saltos das sandálias

Permaneço à mesa, atordoado, tentando compreender aquela mulher impenetrável, que lograra fugir a todos os meus argumentos para que falasse sobre aquele caso de amor. Por fim, acho razoável que ela sendo casada, e feliz, como assim dissera, se negasse a comentar seus amores passados, com um jornalista curioso, desconhecido por ela.

(Parti para outros interesses; dediquei-me a outras matérias românticas, embora me aguilhoasse a frustração, cada vez que me voltava o caso à lembrança.)

Na redação do jornal os temas se sucedem; cada fato notório é dissecado, discutido, e posto de lado quando esgotada toda a exploração possível. A onda das novidades assoma a cada dia, arrebatadora, inclemente e nos debruçamos sobre ela, ávidos, explorando seus melhores ângulos, sondando-a, levando-a ao público, sensibilizadora, crucial, contundente. Pescaram um corpo de homem no mar. Até ai nada de sensacional: As estatísticas demonstram um número elevado de afogamentos no verão, comentam.

“Certamente, diz um colega. Mas este foi um afogamento voluntário. O sujeito meteu-se mar adentro. Era um bom nadador, acreditem. Distante da arrebentação, foi notado pelos ocupantes de um barco de pesca. Estes, julgando-o em perigo, tentaram aproximar-se. Pois o homem percebendo-os, fugiu deles, em seguida mergulhou e asfixiou-se por vontade própria.” “Um suicídio, então”, comento distraído.

“Tudo indica um suicídio, interfere o repórter policial, mas sabemos que o identificaram; um irmão dele surgiu para esclarecer os fatos que ocasionaram a tragédia... Paixão obsessiva que o levou à loucura”.

Fico atento. Tudo que se liga a fortes sentimentos me interessa. Demonstro minha curiosidade e o colega convida: “Quer saber o relato? Venha comigo ao IML. Ouviremos o depoimento do irmão da vítima antes de liberarem o corpo”.

Sigo-o ao IML; à entrada, encontro um conhecido que ao ver-me, entabula comigo uma longa conversa. O repórter a quem eu acompanhava, deixa-me e vai em frente fazer seu trabalho.

Quando enfim o encontro já se desincumbiu da entrevista.

“Então, interrogo, perdi muita coisa?”

“E uma história triste, depois lhe conto os detalhes, mas resumindo o morto foi vitimado pela paixão por uma mulher que o enganou, abandonou e desgraçadamente levou-o a esse gesto extremo”. Vamos ao necrotério, já vão liberar o corpo.

Eu não quero ir, mas meu companheiro enlaçando-me pelo braço, praticamente, obriga-me a acompanha-lo...

O ambiente frio e lúgubre do necrotério me constrange.

Diante de nós sob um lençol branco jaz o cadáver.

O cheiro da morte afasta de mim todo e qualquer pensamento que não seja de horror. Pergunto-me quem teria sido aquele homem, que amaldiçoado pelo amor, não resistira à sua tortura e chegara ao desespero de matar-se

Meu colega, curioso, afasta o lençol e descobre o morto. Quero afastar-me, pois preferia nada ver.

Mas, magnetizados, meus olhos se fixam no afogado. As feições jovens, contraídas, a pele, nua, pálida enregelada. Repugnado, vejo o corte longitudinal da necropsia. Fito seus braços que parecem exaustos, caídos frouxamente ao longo do corpo, as mãos hirtas, os longos dedos de unhas arroxeadas.

Então meus olhos se deparam, assombrados, no antebraço esquerdo, a tatuagem de um coração. E, dentro dele gravado com floreios: “Lena, eu te amo”.

hortencia de alencar pereira lima
Enviado por hortencia de alencar pereira lima em 06/11/2013
Código do texto: T4559417
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.