“o sincericídio de um amigo incorrigível”

Ele era uma figura rara nos dias de hoje, em que a estética e a versão lipoaspirada dos fatos se afiguram mais relevantes e focais do que os próprios fatos em si. Ou seja, era uma criatura sincera em meio a um mundo atônito, perplexo e despreparado para a verdade, qualquer verdade.

Mas não era um sincero qualquer, desses que eventualmente te brindam com uma franqueza impolida arremessada de inopino na face. Era um sincero com credibilidade, o que era ao mesmo tempo sua redenção e maldição.

De fato, tratava-se de uma pessoa tão equilibrada, tão racional, tão impoluta, tão dialética, tão hodierna, tão romântica, tão culta e tão polida que era impossível não escutar suas palavras e não recordar imediatamente das aulas de filosofia clássica, quando se estudava a significância gnosiológica ético-humana do imperativo categórico kantiano...

O que ele dizia deveria ser verdade, afinal.

Se vivesse em outros tempos, tempos imemoriais, decerto, seria nomeado o profeta do oráculo, pois suas palavras pareciam a mais recente revelação, sem sacralismos implícitos.

No entanto, tal credibilidade era concomitantemente o arauto de sua debacle (versão saxônica) social e humana. Seus amigos e colegas sempre acorriam em seu encalço, na esperança de escutar uma opinião, uma palavra, ter um átimo de epifania humana...

Sucessivamente, desapareciam por um longo tempo, invariavelmente. Isso, quando retornavam, óbvio.

Mas, como sua fama era maior do que qualquer ausência eventual, em um irônico rodízio, ditado pela sempre desconsiderada força do aleatório desprovido de origem, estava sempre acompanhado por algum interlocutor, que, na verdade, faria o canhestro papel de a “vítima” da vez.

Seu repertório de sinceridades era imenso, e pode-se dizer que chegara ao ápice do manuseio de tal característica cada vez menos humana, sobretudo, nas suas incuriais e invulgares modalidades de exteriorização: sinceridade involuntária, refletida, espontânea, frívola, esmagadora, rancorosa e et caterva (o melhor de tudo é que ele não soava irônico e nem sarcástico, os dois males de nossa época; ele apenas emitia a sua convicta e racionalizada opinião, sem sutilezas inatamente medrosas).

Uma vez começou a descrever longamente para uma amiga histérica e histriônica, mãe recentíssima de um desses infantes que antes de falar já vira o centro de atenções de qualquer lugar (por sua irreflexão ínsita ao resultado do plexo humano de máxima mobilidade e mínimo juízo de autopreservação), o valor intrínseco do silêncio e os seus reflexos benfazejos para as relações familiares, recordando, inclusive, que na sua já distante infância bastava um breve e rigoroso olhar de seu pai ou de sua mãe para cessar seus comportamentos inadequados. Soube-se, meses depois, que sua involuntária crítica resultara em menos gritos maternos e praticamente nenhuma aproximação com ele novamente.

Outra vez, de modo refletido, se dirigiu a um amigo que não lhe perguntara nada a respeito, mas que apreciava muito a sua constante companhia, que seu caso era simplesmente de alcoolismo clássico, e que gostaria que o mesmo bebericasse tão-somente meia garrafa de uísque ou cachaça por dia (o que em verdade significava uma diminuição etílica diária de 75%) porquanto “o apreciava demais e gostaria de viver ainda muitos anos em sua companhia”. Quase apanhou, mas se diz por aí que o amigo passou a maneirar e a se cuidar mais, longe dele, claro.

Outra vez, a uma amiga que lhe perguntara se devia ou não aprofundar o seu relacionamento então iniciático com um homem, respondera de maneira especialmente frívola que “sem sexo nenhum de nós estaria no Planeta Terra”, o que indicava “algum valor intrínseco superior ao comportamento hedonista quando comparado com a pobreza filosófico-ontológica das convenções sociais limitadoras do desejo feminino”, finalizando com a seguinte pérola: “considerando que a mulher é inatamente dotada pela natureza de um critério de seleção rigoroso para poder eleger o melhor candidato à reprodução, e que as mulheres atuais, por serem independentes e ainda mais racionais, têm o pertinaz condão de geometricamente aumentar o nível de exigência do par eleito, você deveria aproveitar que finalmente encontrou alguém com um perfil mínimo para passar em seu balzaquiano conceito reprodutor, e dar vazão aos seus proverbiais instintos, antes que crie mentalmente novos critérios excludentes”.

Noutra oportunidade, a uma amiga que lhe perguntara se estava acima do peso (o que para uma mulher equivale à fidúcia em grau máximo e quase desesperador), dissera de maneira irresponsavelmente espontânea que gostava mais dela em seu perfil atual, “mais robusto e carnudo, notadamente nas ancas largas e rijas, pecadoramente contraditórias com o débil e canhestro paradigma publicitário mediático contemporâneo”, mas que se recordava muito bem do dia em que a mesma convolara núpcias, quinze anos antes, e que em tal ocasião “estava a nubente virago quinze quilos mais magra...”

Notadamente estúpida, todavia, fora sua sinceridade rancorosa com um grande amigo que viera lhe trazer algumas poesias as quais intencionava publicar.

Após ler detidamente os esboços, contou ao pobre autor que ele mesmo, quando jovem, também tentara, inutilmente, caminhar nas sendas inefáveis da poesia, mas lhe faltara puramente o talento inato a esta faina, uma vez que poesia não seria dizer direta e abertamente platitudes como “tu és linda” ou “meu amor é imenso e eternizado”, mas, justamente, subverter a linguagem através de metáforas e novas construções linguísticas, inéditas ao ponto de tornar belo o que seria trivial.

Indicou ao infausto amigo poeta a manutenção recôndita daqueles esboços, que nada acrescentariam à sua fama, e que deveria fazer como ele próprio: “desistir da poesia e apenas contemplar a inaudita e eloquente força das veras criações literárias nesse estilo, como as obras de Vinícius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade”. Aliás, através deste último, chegou ao verticalíssimo ponto degradador ao lembrar de seu famoso poema “procura da poesia”, destinado a todos os poetas iniciantes, pois um de seus versos (“não forces o poema a desprender-se do limbo”), indicaria, na verdade, no seu caso específico, que o poema sem talento “deveria ser deixado nos grotões da alma autora”. Finalizou lembrando, sutilmente rancoroso, que ele mesmo nunca mais ousara “escrever poesia”. Contaram que o lúdico amigo realmente não publicou, mas nunca mais lhe levou qualquer labor literário.

Por fim, sua sinceridade chegou ao ponto do esmagamento no dia em que seu filho de cinco anos veio perguntar, no dia seguinte ao natal, se, afinal, papai Noel existia mesmo.

Após se recordar mentalmente da promessa que fizera a si mesmo, anos antes, de que jamais mentiria a seu filho, em nenhuma circunstância, passou a explicar - ao ponto da apoplexia - ao noviço rebento que a humanidade tinha uma relação curiosamente paradoxal com a inverdade, pois através da mentira era possível ver beleza na aridez do mundo, fora possível dar asas à imaginação e através da mentira imaginosa foram criadas obras magníficas da humanidade, “como o realismo fantástico da solidão centenária de Márquez e os extensos circunlóquios gravosamente densos das personagens de Fiódor Dostoiévski, inclusive em seu ateísmo latente”.

Arrematou ao filho a explicação de que a inverdade seria frequentemente o caminho humano para a beleza e a compaixão, e um antídoto para os males terrenos, como doenças e morte, e que, por isso, “dever-se-ia ver lendas como o Papai Noel, o Coelho da Páscoa, a Fada do Dente, o Saci e a Mula-sem-cabeça como uma concessão ingênua à bondade ilimitada do gênero humano, capaz de dizer inverdades icônicas para tornar mais feliz a vida”.

Diz-se que, apesar de esmagado pela então incognoscibilidade pueril e pela crueza dos assertos paternos, o garoto compreendeu a única parte que era possível entender naquela fase de sua vida, exatamente sobre ser “lenda” o que perguntara, pois já sabia o que era uma “estória lendária”. Registro, por dever narrativo, que, ulteriormente, o mesmo garoto virou agnóstico na juventude, e na vida adulta se tornou um ateu convicto.

Alfim, devemos chegar à descrição do ápice de nosso amigo sincero, que foi também o seu final trágico e nelsonrodriguiano.

Um colega de infância o encontrou na rua, foram para um bar e, depois de bebericarem o suficiente para inibir o córtex cerebral de ambos, lhe perguntou, com franqueza e rara suscetibilidade, o que ele achava de sua esposa, com quem estava casado há mais de dez anos, ao que ele, nosso amigo sincero, prontamente respondeu - estrênuo ao ponto mortal do limite humano:

“Na verdade, ela é uma bisca, dessas que a gente deveria evitar ter algo mais do que uma mera relação ‘peguetiana’, na linguagem dos jovens de hoje em dia. Não há nenhum dos nossos colegas que prestaram serviço militar obrigatório no Exército que não tenham passado a mão, desfrutado e conhecido a sua expertise na alcova, na qual, aliás, é tendente ao messalino grupal. Sua lealdade conjugal é mínima, e isso explica seus dois filhos com tez e feições marcantemente diversas do marido – você. Por fim, sei de tudo isso porque todos nossos colegas em comum comentam em pormenores suas aventuras nem sempre revezadas e individuadas com ela, e tenho certeza mesmo, dessas de cortar o pulso em promessa, porque, outrossim, já a conheci biblicamente, se é que me compreende”.

(...).

Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto, em 20 de janeiro de 2013.

maurício muriack
Enviado por maurício muriack em 06/11/2013
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