APENAS PARA PASSAR UMA CHUVA

Certa vez, numa bela manhã, início de outono, ao caminhar pela avenida São Luis, em direção à praça da República, Silvia parou diante da Banca de Jornal e acendeu um cigarro. Como quem não quer nada, correu os olhos pelas manchetes e capas de revista. Displicente. Piscou seus cílios fartos e voltou a andar. Um andar cadenciado, treinado, estudado. Um “take” em camera lenta. A leve brisa espaçou os longos cabelos, castanhos, que puderam acariciar as costas. Coisa de torcer o pescoço, o tornozelo e a idéia.

Lá ia aquele mulherão, um metro e setenta, botas longas (de salto), saia leve e blusa de tal forma, que o ombro esquerdo estava descoberto. Bolsa moderna. Grande, com desenhos de uma marca conhecida. Belas mãos, dedos longos e um anel. Safira, para combinar com a blusa. Enfim, como se tivesse saltado de uma capa de Vogue, ali mesmo, daquela Banca. Arquiteta.

Virou na Ipiranga, querendo um “expresso” no Fran's do Edifício Itália. “Açúcar ou adoçante?” “Adoçante, ... obrigada”. Voz macia, educada no Sacre Coer. Sorveu com a alma.

Atravessou a rua e foi em direção à Major Sertório. Parou junto aos vendedores de livros. Esbarrou na banca e deixou cair um. Página 143. Quase sentada nos calcanhares, (para deleite dos presentes) leu: “Eu sei que os outros lhe dirão galanteios, e quem sabe quantas soncises. E não é que você não mereça. Mas eu conheço esse tipo de velho esclerosado, no fundo o que pensam é que você é uma ... prostituta”. Fechou o livro. Comprou-o, após breve hesitação. Colocou na bolsa e aproveitou para retocar o batom. Seguiu para o seu destino: Casa Aerobrás.

Entrou, não sem antes admirar os modelos da vitrine. Impecáveis. Laerte estava limpando as caixas da Rewell e deixou cair a flanela, a caixa da vez e o queixo. Gaguejou. Cruzaram olhares e Silvia já nem sabia o que fora fazer lá. Na verdade, estava atrás de completar uma maquete que tinha de ser entregue na manhã seguinte. Perguntou o preço de tudo, só para ter assunto e acabou escolhendo um casal com filho pela mão, escala HO. Pensou em levar a loira com o cachorrinho, mas ficou com o menininho que tinha uma bexiga amarela. Para tirar a carteira, tirou o livro. Este seria propositalmente esquecido junto ao caixa. Um bom motivo, se ele quisesse revê-la.

Ao assinar o comprovante do cartão, com um sorriso, anotou um número de celular. Queria se entregar. Passaram a se ver regularmente até que Silvia se cansou. Veio a primavera e ela mudou para Curitiba. Um projeto grande no Bacacheri.

Laerte largou da mulher, perdeu o emprego, passou a beber e decorou “Pubis Angelical”.

“- E o problema de que o inconsciente é o outro, o Outro com maiúscula, não sei se você lembra.

-Não, isso nunca você me explicou.

-Sim, como não. Ele (Lacan) diz que o eu é aquela parte do ser sobre a qual cada um tem controle, ou seja, a consciência. Logo, aquela parte sobre a qual não se tem controle, ou digamos o incosciente, passa a ser alheia, passa a fundir-se com o universo circundante. É o outro.

...

-Segundo estas teorias, nunca se está só, porque dentro de si mesmo há sempre um diálogo, uma tensão.”

Manuel Puig sabia das coisas, Laerte não.