Telefonema à noite

O advogado estava se sentindo um tanto sobrecarregado. Tinha vários processos para estudar e tivera um dia cheio no escritório. Não era fácil ser um advogado de família conceituado, sempre solicitado para divórcios, separações e requerimentos de pensão alimentícia.

Sentou-se no sofá, esticando as pernas. Estava sozinho, pois a mulher e os dois filhos haviam viajado para passar uns dias com a mãe dela, que iria se submeter a uma biópsia. Sua filha reclamara muito, porque não queria passar uma parte das férias no interior.

-Ah, vou tomar uma ducha fria. Preciso relaxar a cabeça.decidiu.

Levantou-se para fazer o que pretendia, mas o telefone tocou, colocando-o em estado de alerta.Seria sua mulher? Atendeu.

-Alô.

-Alô. Quem é, por favor?respondeu uma voz de garota.Devia ter uns quinze anos, idade de sua filha.

Ele supôs que deveria ser uma das muitas amigas de sua filha e estranhou que ligasse, já que ela ligara para todas, reclamando que teria que passar uns dias "num fim de mundo".

-É o Gabriel. Quer falar com quem?

-Já que foi o senhor que atendeu, quero falar com o senhor.

-Como? Não estou entendendo!

-Sei que não está.

-Você não é amiga de minha filha?

-Não conheço sua filha não senhor. Eu nem sabia se o senhor tinha filhos. Aliás, não sei quem é o senhor.

-Escute, garota, estou entendendo menos ainda! Se isso for um trote...

-Não, juro que não é trote. Vi seu número por acaso na lista telefônica e liguei porque preciso falar com alguém.

-Menina, vou logo falando que sou advogado! Portanto, se não for problema de ordem legal, ligou para a pessoa errada!

-Por favor, não desligue.

A voz da menina soou tão angustiada que ele desistiu de desligar e falou num tom mais brando:

-Escute, filha, eu não sei por que me ligou, mas vejo que não é trote. Diga-me: por que precisa falar com alguém?

-Porque vou fazer uma coisa definitiva, mas antes quero dizer tudo o que sinto.

Iria a menina fazer alguma besteira? Tentou falar sem colocar alarme na voz:

-Fazer uma coisa definitiva?!

-Sim, senhor, eu vou me suicidar.falou com seriedade.

Por um momento, ele se perguntou se era um trote ou coisa de adolescente desequilibrada. Como alguém ligava para um desconhecido para dizer que ia cometer suicidio? Procurou falar com calma:

-Menina, se você está com problemas e precisa conversar, talvez fosse bom falar com seus pais ou outra pessoa que pudesse lhe ajudar. Eu não sou terapeuta, não posso lhe ajudar.

-Mas eu não quero ajuda, só quero falar o que sinto! Depois, eu não vou falar mais!

Sentando no sofá, ele perguntou:

-O que você sente? Fale.

-Sinto uma dor enorme dentro de mim. É como se houvesse um buraco que fosse aumentando.respondeu a menina com voz triste.

-Filha, diga-me seu nome.

-Não vou dizer.

-Tudo bem. Quantos anos você tem?

-Quatorze.

-Como é que alguém no começo da vida como você quer se matar? Deixe de pensar em besteira.

-Não é besteira!retrucou a menina com raiva.

-Calma, calma.

-O senhor pensa que é trote, né? Posso provar que não. Tem Facebook?

-Tenho. Quem é que não tem?

-Pois, se o senhor quiser, pode me procurar depois. Uso o nome de Vampira. Bem, não vai ver meu rosto, porque só posto fotos dos meus braços.

-E por que faz isso?

-Porque eu me corto.

Aquilo o escandalizou. Uma menina de quatorze anos, cortando-se?

-Filha, eu...

-Mas, se o senhor não procurar, tudo bem. Sei que não estou mentindo.

-Filha, você faz isso com você mesma?! Meu Deus, precisa de ajuda! Não faça isso com você!

-Logo, eu não farei mais.

-Fale com seus pais.

-Não adianta falar com eles, porque vão ficar com vergonha de mim, por eu ser doida. Quem gosta de ter filho doido?

-Quem disse que você é doida?

-Todo mundo diz que sou doida. Na escola, riem de mim, chamam-me de abilolada, falam que eu devia trabalhar num circo como palhaça. Em caso, eu só ouço que não faço nada direito, que sou idiota e que todos têm razão de rir de mim na escola. Às vezes, eu me sinto tão sozinha, que me tranco no quarto ou no banheiro e começo a me cortar.

-Seus pais sabem?

-Não, porque só uso blusa de manga comprida, mesmo no calor.

-Olhe, pare de fazer isso com você, por favor! Procure ajuda!

-Depois, eu não farei mais! Eu não falei que vou me matar?

-Por favor, não se mate! Tirar sua vida não resolverá nada!

-É que é uma dor tão grande dentro de mim que eu penso que vai estourar. Eu nunca contei a ninguém antes, não tenho com quem falar. Estou tão sozinha, ninguém liga para mim.

Escutou que a adolescente chorava e ficou seriamente preocupado. O que diria a ela? Falou:

-Calma, princesa, calma.

-E eu sou um aborrecimento para meus pais. Não seria melhor eu morrer? Eles ficariam livres de uma filha problemática e chorona e eu não teria mais que viver aguentando meus colegas dizendo que sou feia, desajeitada...

-Não ligue para seus colegas. São uns idiotas. E você não é um aborrecimento para seus pais, princesa.

-Por que me chama de princesa?

-Não é assim que os pais devem chamar as filhas? Eu chamava minha filha de "minha princesa". Hoje, já não chamo. Ela acha ridículo.

-É?

-É, ela diz que está crescida demais para essas coisas. Quando ela era menor, sentava no meu colo e eu sempre a beijava quando ia deixá-la na escola. Hoje, ela nem se despede ao descer do carro.

-O senhor fica triste?

-Um pouco. É chato quando os filhos nos preferem longe deles.

-Pois, se o senhor estivesse aqui, eu iria querer que me abraçasse.

Ele pensou que conversar poderia distrai-la e continuou:

-Eu lhe daria um abraço bem grande, princesa. Escute, desista dessa tolice de se matar. Você é importante.

-Como sabe?

-Ora, todos são. E eu percebo que você é uma menina sensível, necessitada de carinho.

-O senhor não pode saber isso de mim. Não me conhece, nunca me viu.

-Eu não preciso de olhos para ver que você é muito sensível e precisa de alguém que a ouça e a entenda. E que deve procurar ajuda.

-Eu não sei como.

-Procure uma pessoa de sua família em quem você confie ou alguém mais velho que conheça. Você falou que sente uma dor muito grande, não é? Quem sabe, falando com alguém, você não se sentirá melhor?

-O senhor pensa assim?

-Penso. Eu quero mesmo lhe ajudar.

-Como posso saber que quer me ajudar? O senhor pode estar sendo gentil só por educação.Talvez, depois que eu desligar, nem lembre de mim.

-Pois vou lhe mostrar que me importo com você. Vou lhe dar o endereço do meu escritório e, se você quiser, apareça por lá.

Seria prudente? Talvez não. Mesmo assim, ele deu.

-Anotei. disse a menina.

"Se tudo que ela falou for verdade, quem sabe minha ideia não servirá para que desista de cometer suicídio?"

-Pronto. Não vê que me importo? Agora, princesa, vá dormir. Amanhã, tudo será melhor.

-Tem certeza?

-Tenho. Boa noite.

-Boa noite.desligou.

Ao desligar, ele não estava tranquilo. Ligou o computador, entrou no Facebook e procurou por Vampira, horrorizando-se com o que descobriu: uma menina de cabelos muito compridos, os quais usava para esconder o rosto e que botava os braços marcados de cortes e cicatrizes à frente do corpo. Os comentários que ela postava eram: "A dor física me faz esquecer a dor emocional"; "Meu coração sangra mais que meus cortes" ou "Queria poder chorar sangue".

-Meu Deus, ela está muito mal! Coitadinha!

No dia seguinte, ao telefonar para a mulher, perguntou pela sogra e acabou contando sobre o estranho telefonema, a conversa com a adolescente e a descoberta no Facebook.

-Querido,será que, depois do telefonema, essa menina está bem?

-Não sei, meu amor, eu queria saber.

-Tomara que tenha desistido. É tão triste uma criança pôr fim à própria vida.

Despediu-se da esposa e pensou por um longo tempo no relacionamento que tinha com os filhos. Sua filha mais velha, a quem tentara dar o melhor, tornara-se uma verdadeira patricinha, metida e esnobe, que só recorria aos pais quando precisava de dinheiro e dava demasiada importância a roupas e aparência. E seu filho? Era um verdadeiro cabeça oca, que não estudava, vivia vendo besteiras na Internet e andava com amigos superficiais que não falavam em outra coisa além de skates e garotas.

"Para meus filhos, tragédia é ficar sem dinheiro para comprar o que gostam e essa garota está sentindo falta de quem lhe dê amor e a entenda."

Foi ao escritório, mas não conseguiu se focar apenas no trabalho como antes. A história da menina não saia da sua cabeça e ele rezava mentalmente para que houvesse desistido de cometer suicídio.

No fim da tarde, em casa, ligou a televisão e viu que o telejornal anunciava:"Adolescente pula para a morte." Desesperado, acompanhou as notícias que passavam ao vivo, onde as pessoas se aglomeravam e os policiais diziam que ninguém devia chegar ao local. A vítima, uma adolescente, pulara do alto de um edifício e não fora identificada.

-Meu Deus, por favor, que não tenha sido ela!

Ficou atordoado, imaginando que a jovem desesperada que lhe ligara a noite anterior poderia agora estar sendo encaminhada ao IML. Sentindo-se impotente, não comeu nem conseguiu estudar os processos, rezando para que a menina que lhe telefonara não fosse a suicida.

Tarde da noite, o telefone tocou. Seria ela? Tremendo, atendeu:

-Alô?

-Alô.

Reconheceu a voz da adolescente.

-Ah, princesa,é você! Que bom que é você!

-O senhor acha mesmo bom que seja eu?

-Sim, você não imagina como eu estava preocupado!

-Depois que o senhor desligou, eu não quis mais fazer o que ia fazer.

-Falou com alguém?

-Não, não tive coragem.

-Tudo bem, está tudo bem. Pelo menos, você está viva.

-Quero dizer uma coisa.

-Diga.

-Meu nome é Maria Lúcia.

-Um nome lindo.

-Eu vi na televisão sobre uma moça que pulou de um prédio, sabe? Pensei: quem sabe, se ela não tivesse encontrado alguém que a ajudasse, ela não teria desistido. Aí, eu agradeci porque o senhor quis me ouvir e ajudar, mesmo sem me conhecer.

-Pois estou querendo conhecer você, princesa. Apareça no meu escritório.

-Posso mesmo?

-Pode.

-Boa noite.

-Boa noite, querida. Durma bem.

Ela desligou e ele pensou que uma grande angústia saíra de seu peito.

-O que será dela agora?

Alguns dias depois, sua esposa e filhos voltavam. A mãe dela estava bem. Os filhos estavam com um humor péssimo. Ele falou com a mulher que a menina ligara e dissera que desistira de se matar.

-Que bom!comemorou a mulher.

Uma tarde, à hora do almoço, sua secretária bateu à sua porta.

-Entre.

-Dr. Gabriel, uma jovem chamada Maria Lúcia quer falar com o senhor.

-Ah, claro, mande-a entrar.alvoroçou-se.

Logo, ele viu uma menina alta, magra, tímida, de pele moreno-clara, cabelos muito compridos e que usava casaco "jeans" entrar.

-Oi. balbuciou a jovem.

Tinha olhos grandes, expressivos, escuros e muito doces.

-Oi, princesa. Como você está? Por favor, sente.

Ela sentou e falou:

-Eu tomei coragem e falei com meus pais. Mostrei até meu Facebook. Quando viram,não acreditaram! Perguntaram-me por que eu nunca fora até eles antes e como era possível que eu escondesse aquilo! Respondi que tinha medo de que ficassem com vergonha de mim por eu ser doida! Meu pai, então, disse: "Não, querida, eu não tenho vergonha de você e não acho você doida! Agora, eu vejo o que você está passando!"

-Que bom!

-Quero muito agradecer ao senhor. Fez com que eu ganhasse coragem de mostrar isso a meus pais. tirou o casaco.

Consternado, ele olhou para os curativos e marcas de cortes antigos nos braços dela e se aproximou, pedindo:

-Por favor, eu peço: nunca mais faça isso com você! Peça ajuda e deixe que cuidem de você!

A menina ergueu a cabeça. Tinha lágrimas nos olhos.

-Posso pedir uma coisa ao senhor?

-Claro, o que você quer?

-Pode me dar um abraço?

Protetoramente, ele a abraçou.

-Está tudo bem, filha. Está tudo bem.