AS ÚLTIMAS COISAS DO MUNDO (CAPÍTULO 3 - A ÚLTIMA VISITA)

Acordou bem humorado, não somente por que o clima estava ótimo naquela manhã de sábado, com vento soprando na cidade como costuma soprar na praia; mas também por outras coisas, aquelas coisas que nos fazem acordar com um sincero sorriso no rosto e nos impulsiona a sair de casa, aquelas coisas que não acontecem sempre, aquelas coisas que aos poucos abandonam aqueles que desejam elas todos os dias, aqueles que acordam sorrindo necessariamente, como se a felicidade fosse algo óbvio e não discreto, aqueles que aos poucos vão se descobrindo com sorrisos tristes e amarelados.

Mas isso nunca fora o caso de Jurandir. Poderíamos dizer que até o último minuto de sua vida fora sincero com os seus sentimentos, ou ao menos sincero na tentativa desta sinceridade, pois até mesmo a sinceridade é algo que requer prática e disciplina. Enfim, de qualquer forma, ele conhecia o doce gosto de saber que é possível ter momentos para além dos limites do bom humor e do mau humor, da felicidade e da tristeza, e talvez, até mesmo, como diria Nietsche, para além do bem e do mal.

Somente as pessoas assim sabem aproveitar os momentos de felicidade, pois de que adianta um prato delicioso da nossa comida preferida quando não estamos com fome? Ou ainda uma cama quente e macia quando não estamos cansados? Nada. E, se as coisas que julgamos ser boas, não são boas em todos os momentos da vida, por que a felicidade seria?

Mas isso não importa agora, pois naquele sábado ele estava particularmente feliz. Tão feliz que não sorria. Tão feliz que decidiu fazer uma visita surpresa. Entrou no seu sedan preto – ainda estranhava, ainda sentia saudade do carro antigo - e dirigiu cerca de trinta minutos, saindo da região central da cidade, pegando algumas ruelas até chegar a uma avenida que em seguida se incorporava a outra, para então pegar uma terceira e estacionar o carro em frente a um lugar com um portão de ferro grande e com um letreiro em cima - como aqueles que dão boas vindas às pequenas cidades do interior - onde quem soubesse ler, leria “O Jardim”.

Trocou algumas palavras com o porteiro e adentrou lentamente aquele jardim que era de todo belo, cuidado, limpo e cheio de árvores e pequenos canteiros tão variados quanto o solo permitia. Notavam-se algumas pessoas ao redor de algumas árvores ou canteiros, sentadas ao chão, lendo, conversando entre si ou sozinhas, enquanto outras passeavam pelo jardim.

Parou em frente ao que achava ser a árvore mais bonita do mundo, uma cerejeira típica da região.

- Oi, querida.

Nisso ficou um tempo parado em frente à árvore, inclinou os joelhos para se sentar no chão, mas ao pensar que levantar seria difícil decidiu ficar de pé “Deveria ter trazido uma cadeira”, sim, deveria.

- Sei que não esperava por mim hoje.

Na verdade ela esperava, pois estava ali parada, desde que fora plantada. As árvores sempre esperam.

- Sinto sua falta. Mas não estou aqui para te dizer somente isso. Já disse muitas vezes, embora nunca seja demais. Vim para dizer que cumpri minha promessa, fui forte e fui feliz. Sinceramente, não pensava em cumpri-la quando você se foi...mas eu não poderia negar seu último desejo, não te amando como eu te amo. Minha salvadora! Muito tempo atrás, quando nos conhecemos, você salvou a minha vida...a minha não, a vida daquele rapaz que era tão diferente de mim. E hoje sinto que em pouco tempo você me salvará novamente, mas, desta vez, salvará a minha morte, pois o que seria de minha vida e de minha morte sem você?

Jurandir sorriu e sentou-se ao verde solo, não se importando mais com seus joelhos fracos.

- Nada verdade, nada importa muito agora. Pois estou no final de uma maratona em que a conclusão não é a linha de chegada, mas sim a queda. Quero cair, quero morrer, quero voltar a viver aí do seu lado, bem aqui – e nisso botou a mão ao chão, do lado da cerejeira – e talvez, também, em outro lugar bem mais bonito. Quem sabe seremos jovens outra vez, não seria ótimo? Mas você já deve saber destes segredos, não é mesmo? Sempre esteve um passo em minha frente, me mostrando o caminho e agora parece que eu sei o caminho, mas é difícil te ver. Onde estão seus olhos? Será que ainda olha pra trás? Será que continua me amando? Oh, tenho ciúmes dos anjos. Desculpe as lágrimas deste velho bobo. Lágrimas não adubam a terra, mas ele não sabe dessas coisas como você. É difícil imaginar que você seguiu em frente, mas seria muito doloroso que não fosse assim, não posso pedir que olhe pra trás, não posso pedir que espere por mim, mas deixe suas pegadas e algumas roseiras pelo caminho...te seguirei, te encontrarei....

-Pai!

- Oh, Pedro, você...não sabia que viria hoje – falou Jurandir, esfregando os olhos.

Pedro colocou as mãos nos bolsos, mas quando viu que Jurandir tentava se erguer, fez um gesto de desculpa e o ajudou. O constrangimento dos dois não era somente pela situação. A relação de pai e filho sempre fora muito confusa, principalmente depois da morte da mãe, que era a apaziguadora daqueles dois que eram tão diferentes um do outro quanto um diamante e uma pétala de rosa. Um era prático, objetivo; o outro sentimental demais, leve demais, frágil demais. E o que torna essa relação um pouco incomum é o fato de o primeiro ser o filho e o segundo seu pai. Sem a mãe, que era, incrivelmente, as duas coisas ao mesmo tempo, eles se feriram mutuamente e se afastaram durante um tempo. Mas, ao notar que a dor de viverem separados era maior do que a dor dos ferimentos, se reaproximaram. E, somente aí, quando aceitaram que continuariam a se feriar, é que aceitaram um ao outro com todas as suas diferenças. Ao mesmo tempo em que desistiram de mudar aquela pessoa tão amada, perceberam que tanto o diamante quanto a rosa são lindos, e a beleza, meus amigos...bem...ela é linda. E é tudo que tenho a dizer sobre eles.

- Imaginei que você estivesse por aqui. Tentei ligar para seu celular, mas...

Ambos riram. Jurandir não tinha celular. Antigamente brigariam por causa disso. Mas agora as coisas estavam mudando. Então o filho continuou a falar ao pai:

- Desculpe, não queria incomodar, só estava pensando se você gostaria de passar o seu aniversário lá em casa? Todos estão muito empolgados com a ideia.

Jurandir lembrou que tocaria a noite num bar da cidade, um lugar em que tocava já fazia dois anos, desde que se mudou de uma cidade vizinha pra lá, para ficar mais perto do filho e da esposa. Dariam uma festa, mas não podia negar o pedido do filho. Bastava voltar cedo e estaria ótimo no dia seguinte

- Claro, isso seria ótimo.

- Ficaremos felizes...ela está linda, não está?

- Como sempre esteve.

- Bem, vou indo, te esperamos amanhã. Você...

- Ficarei mais um pouco...

- Claro.

Abraçaram-se e a árvore ficou muito feliz vendo o filho e o pai envolvidos em um laço de carinho, que embora eles não soubessem, ela tinha certeza de ser eterno, pois, como vocês sabem, ela sempre esteve um passo a frente.

Lucas Esteves
Enviado por Lucas Esteves em 06/01/2014
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