O violinista

Assim que saiu da mercearia pôde ouvi-lo. A moça andava depressa - tinha que chegar rápido em casa - e a sacola de pães quase caía de seus braços. Seus sapatos mal tocavam o chão, tamanha era a velocidade com que movia os pés pela calçada. Os cabelos voavam pra trás; o suor escorria por seu pescoço, até o colo. Porém, mesmo tão longe - e tão apressada -, a moça podia ouvi-lo. Que som era aquele? Deixe-me pensar... Era um zumbido. Bem leve. Seria choro? Era tão triste!

De repente ela resolveu desacelerar. Foi bem lentamente, a passos curtos, quase na ponta dos pés. A cada segundo em que avançava o som parecia mais nítido - que era? Prosseguiu no caminho em linha reta, na mesma direção do som. Mas, ora! Parecia perto demais! E era um violino! Sim, um violinista! Mas onde estava? Onde?

A moça estava parada no meio da calçada. Os transeuntes passavam tão rápido por ela que seus pães quase desabavam no chão. "Desesperados", pensou. Agachou para amarrar os cadarços - estavam pretos de terra! Alguém deve ter pisado nos pobrezinhos no meio daquela correria do horário de pico da Av. Paulista. Levantou, arrumou os óculos de grau, ajeitou a sacola no peito e apertou os olhos: lá está!

Era uma triste figura. Um senhor de aproximadamente 80 anos, barba branca, cabelos ralos e grisalhos, pele enrugada, roupas sujas. Estava em pé a tocar seu violino gasto com um pequeno pote metálico a sua frente - havia conseguido apenas algumas poucas moedas. Tinha os olhos bastante cansados e a pele queimada. Os últimos raios de sol do fim de tarde batiam em seu rosto e faziam-no parecer quase celestial. Seus sapatinhos de camurça preta já estavam bastante furados e suas calças cinzas eram deveras curtas. A camisa branca - já amarelada - exibia um pequeno pombo bordado no bolso do lado direito. Apesar de muito humilde, o senhor estava na mais perfeita postura de um violinista: o pé esquerdo um pouco atrás do direito; a perna direita levemente estendida para a frente; a coluna impecavelmente ereta; a cabeça erguida; as mãos leves segurando o instrumento com todo o carinho. Seus lábios cerrados estremeciam a cada nota aguda que atingia.

A moça, aos poucos, foi transformando seus pequenos olhos em nascentes de um rio tranquilo, desaguando no alto das maçãs de seu rosto. Cada pelo de seu corpinho magro estava docemente arrepiado. Apertou a sacola de pães contra a barriga, com os braços entrelaçados, e permaneceu ali, parada, extasiada. As pessoas continuavam correndo pela avenida e trombando em suas pernas e ombros - ela quase caía. Que importava? O som era inebriante. Aquele pôr-do-sol entoado pelas canções do velho violinista era incrivelmente angustiante - porém belo. As nuvens, o tempo, os homens, as mulheres, o vento, os carros: tudo parecia ter parado de repente. Seus olhos estavam fixos nas mãos calejadas que seguravam o violino.

A música finalmente acabou. Por um momento a moça pareceu sair de seu transe e se deu conta de que estava sozinha a assistir o violinista. Ninguém - nem mesmo uma criança - parava para ouvi-lo. Todos corriam. Segurando os pães com uma das mãos, enfiou a outra no bolso e sacou uma nota. Ajoelhou-se aos pés do velho e colocou-a no pote metálico. Qual não foi sua surpresa quando, ao olhar para o lado, viu, bem encostado a ele, um homenzinho. Ele tinha uma aparência tão triste quanto a do violinista: estava com vestes velhas, sentado no chão, segurando os joelhos com os braços cruzados. Usava um chapéu preto caído no rosto. Parecia estar quase dormindo.

"Oi" - disse a moça.

"Ele não pode te escutar" - falou o violinista.

Ela olhou para o rosto do velho.

"Como? Não pode me ouvir?"

"Ele é surdo, moça."

Aquilo a fez ficar pensativa por alguns instantes. Era surdo? Era surdo e estava ao pé do violinista "escutando-o" tocar? Ora, como? Alguém passou depressa demais pela calçada e pisou em seus pés. Ela deu um leve gemido.

"Então ele não te ouve?"

"Moça..." - o velho fez uma pequena pausa - "ele é o único por aqui que pode me escutar".

Ela, ainda de joelhos, olhou para cima - com água nos olhos - e sorriu para o violinista. Em seguida, ele iniciou outra canção.

Dona Iaiá
Enviado por Dona Iaiá em 20/01/2014
Código do texto: T4657715
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.