*Os carregadores de pianos.

Os carregadores de pianos

Corria o ano de 1964 e o Maestro Arthur Moreira Lima já era famoso no mundo todo, quando anunciaram que iria ter uma apresentação dele no Theatro 4 de Setembro, em Teresina.

Por esse tempo, eu cursava o ginásio industrial na Escola Técnica F. do Piauí e, a princípio, esse acontecimento nada tinha a ver comigo, se eu não fosse, segundo o conceito de alguns, um aluno diferente dos meus pares. É claro que eu gostava dos Beatles, da Jovem Guarda e das peladas de rua (naquele tempo, “pelada” era outra coisa), mas eu gostava muito também de música erudita, de conjuntos como Green Muller e outros. Também passava boa parte de meu tempo livre na biblioteca da escola.

Sabe-se lá por quais “cargas d’águas” o tal concerto foi transferido para a Igreja de Nossa Senhora de Lourdes, na Vermelha, justamente minha Paróquia de origem.

Trata-se de um templo lindíssimo, em estilo rústico, com imagens talhadas em madeira, por Mestre Dezinho, que também era o vigia da praça ao lado da igreja.

O maestro chegou ao local às 8h da manhã, para uma apresentação que começaria às 21 h. Ensaiou durante dez horas, para um concerto que duraria duas horas e vinte minutos, tal era a sua dedicação.

Às 20h, o auditório já estava lotado e eu lá, metido em meu terno tropical azul-marinho, em meio a tantas sedas e personalidades locais, algumas tão deslocadas no tempo e no espaço, quanto um siri no Saara.

O espetáculo começou, pontualmente, no horário previsto e os dedos do maestro flutuando sobre o teclado lembravam as dez bailarinas na Morte do Cisne. Se passasse por ali uma mosca voando, seria notada, tal a concentração da plateia.

Ao final, aplausos ensurdecedores se fizeram ouvir, por quase cinco minutos. Todos estavam, por assim dizer, encantados.

A igreja já se esvaziara, quando um gaiato ao meu lado, amigo meu, fez o seguinte comentário:

– Para mim, não tenho dúvidas de que o maestro é um excelente profissional, digno de todos os elogios, mas eu queria ver se não tivesse aparecido alguém para empurrar aquele piano até o palco, se ele tocaria alguma coisa aqui...

Olhei atentamente para meu amigo e respondi:

– Bicho, eu acho que nem Platão, em seus melhores momentos, faria uma reflexão dessas. Parabéns!

O tempo passou. E hoje, olhando para trás, me dou conta de quantos carregadores de pianos anônimos já se mataram, para que outros recebessem (embora com justiça), os aplausos e o reconhecimento de tantos.

Quantos pianos eu já não tive que empurrar ladeira acima e nem sequer ouvi os primeiros acordes ou as notas finais do concerto...

Quantos empurradores de pianos nos rodeiam neste momento!