Amanhecer distorcido

O que poderia eu – um pecador, um cavaleiro negro pedante – dizer sobre a beleza quando a mesma já expressa por si a perfeição? Quando a contemplo sinto que nada mais há, se houve algum dia. Não há padrões, definições para a beleza, é a pura essência da arte; os olhos do poeta; o coração do amante; o silêncio do escritor; Deus! Deus é a beleza.

Peço desculpa de antemão, caro leitor, por essas linhas mal traçadas que a nada dão início. Mas, é tal a confusão que acarreto em minha alma e é sobre a mesma que venho a escrever. Dê-me uma das mãos, para que eu possa mostrar-te minha odisseia, pois de nada valem as palavras onde reina o silêncio.

Um som familiar berra em meus ouvidos, acordado estou, mas nego em abrir os olhos. Uma breve alegria ou mais uma decepção: estou vivo. Estou? O que seria viver? Se relevarmos a intransitividade da norma, viver seria apenas ter as funções vitais em ordem. Mas seria apenas isso? Quando observo o normal coletivo, vejo que viver é dar importância a todas as felicidades superficiais que nos cerca, deleitando-se mais e mais a um século afim, até que chegue sua hora de cruzar as águas do Aqueronte - sem moedas restantes - para enfim descansar.

Abro os olhos, a escuridão ainda me envolve. Realmente acordei ou seria mais um de meus sonhos lúcidos? Pois, sofro constantemente desse mal. Eis que por breves momentos eu acordo e vivo como qualquer um viveria, andando com total convicção de meu estado de esclarecimento. Mas há sempre algo que me intriga: estou sempre despido, não fisicamente, mas moralmente. Nestes meus momentos de nudez, meu êxtase se eleva ao limite, misturando-se com perturbadoras sensações de medo e horror: estou vendo-me sem máscaras e monstros zombam de mim e de minha falsa humanidade. Percebo que não posso fugir de meus demônios, é quando lembro que eu sou o monstro e vejo que nunca tive rosto, a máscara é meu verdadeiro semblante. Um fantasma que esconde sua deformidade em um porão sujo ao som de uma mórbida sinfonia.

Acordo. Estou tomado pelo desespero e envolto em escuridão. Habito novamente minha veste de hipocrisia, resido enfim no real? Não tenho a percepção para acordar realmente, apenas me transporto de sonho em sonho até concluir minha exaustão. Ao menos esse é menos conturbado. Imagino que seja esse que me encontro agora a tal falada fantasia coletiva ou mundo real - como preferir chamar.

Levanto-me. Fito meu quarto sendo preenchido por radiantes raios solares ainda fracos. No extremo do quarto posso ver o quadro em minha parede. É uma réplica de "A dança da vida" de Munch. Confesso que não sou um grande conhecedor da arte, mas tenho meus interesses. Algo que me impressiona são os dois dançarinos em destaque dançando com a imperfeição de suas faces à mostra, com nada a se importar. Apenas dançando como se nada mais houvesse. Afinal, não há mais nada para se contemplar em tal casal, além da força que os une como elos inquebráveis ao tempo que se soltam da tão curta vida com seus suaves e nada frágeis passos.

Conforme mais iluminação acomodava-se em meu aposento, mais detalhes no quadro pude ver. Desta vez, vejo os casais ao fundo dançando com seus traços irreconhecíveis e me intrigo: como poderiam tais casais estarem tão ligados aos passos da vida sem existirem? Estariam eles vívidos em duas realidades? Ou inexistiam eles em mais de um mundo? Tais perguntas me assombram. Talvez eles estejam ali para que suas imagens sejam gravadas nas memórias de todos aqueles que os admirarem, espalhando suas inexistências por todos os cantos imagináveis fazendo assim, que suas inexistências sejam a prova de sua existência no contexto social.

A luz já estabelecia uma imagem completa do quarto. Mas, observá-lo conforme é mostrado a mim significa vê-lo como realmente é? O que eu devo ver? O mundo real?! Tal imensidão poderia estar realmente na minha frente e sou o único incapaz de sentir. Penso que essa seja a verdade - mais que penso, desejo fortemente acreditar - e eu seja apenas um louco cujos olhos deficientes não podem alcançar a ética do objetivismo.

Nada havia, como se sobre uma planície desolada estivesse. Algo estava errado. A luz que deveria iluminar a crônica que me cercava manifestava-se em mim como o expressar de um sentido. Estou louco e estou são. De que importam agora padrões, afinal, eles nunca foram significantes para mim. Padrões são personalidades pré-prontas para os que temem a busca por si. Não que eu esteja a ofender o conformismo - pois também sofro desse mal. Mas, o que venho a dizer a ti, vítima de meus confusos pensamentos e também de minha admiração, é que seguir inocentemente a corrente não é o mesmo que desejar seguir a corrente. Eu mesmo me considero um tolo, um idiota, por desperdiçar de forma contraditória a vida que corre em minhas artérias. Pois, no auge de minha curiosidade levantei a cabeça para poder ver. Arrependo-me de tal feito. Quando levantei a cabeça, vi o mundo de uma maneira que não queria ver. Havia um abismo que ia de uma ponta à outra, não importava como eu seguisse, decerto cairia. Do abismo uma enorme e inominável criatura saía, muitas cabeças tinha, mas somente uma podia ver. Foi quando aquela que podia ver falou comigo, ela se comunicava de maneira solene e falava sobre as belezas do mundo. Ela me disse também que poderia eu seguir o caminho da forma como bem entendesse, livre eu era, e assim seria até que de frente a ela me encontrasse. Pois bem, assim farei. Livre sou e assim serei.

Acordado, realmente acordado estava. A estranha iluminação que me cercava enchia meus pulmões com a pura essência de ser. Correndo em pleno êxtase fui pelos corredores escuros de minha casa até a porta da frente. Parado agora estava observando desatento a saída. Atrás de mim se encontrava um cômodo ainda escuro e à frente, o inimaginável. Ainda havia tempo para voltar, para esquecer. Ainda havia muitos lugares escuros os quais poderia eu preencher de alegrias e risos, de memórias e uma falsa inocência. Estou farto. O tédio, o vazio me dominara há muito. Embora jovem, vivi experiências que muitos não viverão nem em seus mais preciosos ou mais temerosos anos. Já não desejo mais nada que a crônica do real possa oferecer-me. Tenho fingido ser por muito tempo e coragem agora consegui para buscar a minha verdade, mesmo sabendo que ela pode inflamar minhas mãos.

Com grande violência empurrei a porta e segui para o topo da casa. O que vi me deixou no apogeu de minha lividez. O que vi nada mais era que o brilhar do sol em seus primeiros momentos. Acima de mim havia o céu totalmente nublado, e a frente uma faixa horizontal onde mesclavam-se o azul e o laranja. Mas não era somente um amanhecer, era um novo mundo que nascia, um mundo transcendental. E aquele mundo era tão perfeito quanto intocável por mãos materiais, ao se aproximar elas queimavam e queimavam.

Não só minhas mãos, mas todo meu corpo agora queimava. Aquela paisagem fantasmagórica me levou a viajar por dimensões de medo e perplexidade. Pouco a pouco, meus membros iam se desfazendo, até que não sobrou mais nenhum. Como um demilich que abandona sua veste pútrida era eu naquele momento. Humano não mais era, e por isso eu era enfim livre para sobrevoar o desespero. Livre estava de toda a presunção, todo perjúrio. Então eu deixei de ser o ser. O que eu cometesse não mais poderia ser expressado por verbos, apenas a beleza do silêncio poderia me compreender.

Eu não existo. Por não compartilhar um ideal coletivo pude vivenciar tal evento com meus próprios olhos. Mas eu não existo. Isso me fez perceber que o real não importa, "o essencial é invisível aos olhos" e o coração, em sua conotação coletiva, está cego. Sou um ser excepcional, repleto de demência social. Sou uma peça deficiente de um quebra-cabeça incompleto, que por minha incapacidade, observo com perplexidade o todo e sua objetividade vazia.

As nuvens agora cobriam o amanhecer dourado, recuperei portanto os sentidos. Olhei para baixo e vi aquele mundo cinza, por fim, compreendi o que eu realmente almejava. Desci enfim e voltei para meu quarto, um longo dia rotineiro me esperava. Estava convicto de minha decisão. Viverei eu como um ser, que assim como o escritor fracassado fez, me revestirei com a pele morta de minhas emoções de outrora e ensaiarei indeterminadamente para esta peça que nunca será apresentada, seguindo sempre em frente o fluxo. Não tenho mais medo do abismo. Pois, mesmo que sua escuridão me inunde, basta esperar que logo lá estará o meu amado e desejado amanhecer para me levar para aquele lugar que é só meu, onde nem o mais leve dos homens poderá me alcançar. Dá-me uma das mãos, estimado anônimo, para que eu te mostre a beleza de ser. Dá-me uma das mãos e abandona sua veste humana para que possa vivenciar o que só o silêncio pode expressar.

Johnny Baldwin
Enviado por Johnny Baldwin em 08/02/2014
Reeditado em 13/05/2018
Código do texto: T4683121
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