Maria das unhas Carmim

Maria abre as janelas todas as manhãs, mesmo que não haja sol. Convida a luz e o vento para entrarem e se fartarem.

Arruma a casa com frescura, coloca a mesa do desjejum só para ela: bolo de milho que fez na noite passada, café fresquinho, leite de vaca tipo A comprado em saco plástico – porque tem mais gosto. Coloca sempre três pratos e três xícaras. Tira da geladeira uma lata de manteiga, um vidro de geléia que ela mesma fez com as pitangas da praça da igreja. Pão, ela só come fresco e quente que é para derreter a manteiga, mas hoje não é bem um desses dias que Maria quer sair para comprar pão. Então coloca um pedaço do bolo de milho na torradeira.

Maria já está vestida de vestido vermelho com flores amarelas e cor de vinho. Usa um colar com um medalhão de Nossa Senhora Aparecida e as unhas dos pés e das mãos estão impecavelmente pintadas por ela mesma de Carmim. São somente nove horas da manhã e ela começa a varrer a sala, bate os tapetes, faz a cama. Tira a mesa do café que degustou sozinha, apesar das outras duas xícaras.

Lava o arroz, separa o feijão e prepara o almoço como se muita gente hoje fosse almoçar por lá. Mas não, Maria vive sozinha e quase ninguém passa por lá para visitá-la. Sendo assim, não havia necessidade de colocar mais dois pratos, mas Maria os coloca. E coloca mais dois copos também para o refresco de maracujá que preparou.

Maria abre todas as janelas antes de almoçar. Depois, recolhe a louça, lava, enxuga, guarda. Limpa o fogão e deixa a cozinha brilhando e com cheiro de pinho. Senta-se na frente do sofá e assiste a um desses programas de tarde de tv aberta. Não que ela goste, mas o dinheiro não dá para a TV à cabo.

Dezesseis horas é hora de tomar remédio. Maria sempre deixa o remédio perto do copo de água na mesinha ao lado do sofá. Tenta ler um livro, mas a vista pesa. Pensa em comprar um gato.

Às dezessete ela passa um pouco de blush e um batom vermelho. Coloca brincos delicados nas orelhas e um perfume de alfazema. Sai com o vestido de flores, as unhas pintadas e sandália rasteirinha. Desce as ruas de paralelepípedos de Paraty e vai até a igreja. Senta no banco e conversa com Deus, a única pessoa com quem Maria conversa todos os dias. Mas não fica para a missa porque tem que estar em casa em tempo de pegar a novela das seis.

Então ela pára na praça, colhe mais algumas pitangas e volta para casa, subindo as ruas de paralelepípedos. Liga a televisão, prepara uma banana com aveia e mel e assiste à novela. Emenda com o telejornal e balbucia algumas exclamações sozinha. A noite chega. Maria vai à cozinha e requenta o arroz, o feijão e o resto do almoço. Põe a mesa imaculadamente com os três pratos e três copos. Termina o jantar com um pedaço do bolo de milho do outro dia. Talvez faça outro amanhã. Então ela tira a mesa, lava, enxuga e guarda a louça. Limpa um pouco mais a cozinha com a mistura de pinho.

Tenta assistir à novela das oito, mas não gosta, diz que tem muita maldade. Passa o resto da noite naquele livro que não conseguiu terminar, desviando sua atenção entre as linhas e o gato que queria comprar.

Maria então desliga a TV, tira o vestido florido, os brincos, a sandália. Entra debaixo do chuveiro e toma um banho morno e longo com sabonete Phebo. Veste uma camisola azul, fecha as janelas e vai dormir esperando ansiosamente pelo dia seguinte.

Maria tem 82 anos e dois velhos amigos: a luz e o vento que entram todas as manhãs para se fartarem. Às vezes eles trazem o sol ou a chuva, e então ela coloca mais alguns pratos na mesa.

BiancaB
Enviado por BiancaB em 08/02/2014
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