Intérprete de si mesma

Gisele era uma grande atriz. Interpretava sua personagem da hora que se levantava da cama até a hora de novamente deitar-se. Era a personagem de si mesma. Fazia o que era necessário para dar continuidade à sua vida, o que as pessoas esperavam dela e o que ela esperava de si mesma. Acordava, tomava um bom café da manhã, fazia caminhada, aprontava-se para ir trabalhar. Cuidava de cada detalhe para sair de casa impecavelmente bela.

No trabalho cumpria de maneira exemplar suas atribuições, era divertida, falava coisas interessantes, o que fazia dela uma pessoa não só aceita, mas também querida e que até despertava algumas paixões. Na faculdade, se destacava pelas suas idéias inovadoras, falas marcantes e trabalhos considerados brilhantes. Sempre levava luz aos lugares por onde passava. Nas reuniões familiares, sempre com suas histórias contadas de maneira tão entusiasmada, planos, risada gostosa...

Todos que a conheciam e a amavam, não sabiam que amavam na verdade sua personagem, e que essa Gisele com quem conviviam talvez nunca tenha de fato existido. Fazia essa interpretação há algum tempo, não sabia ao certo quanto.

À noite, em seu quarto, ela podia então desfrutar de todo seu vazio, podia despir-se de tudo que compunha aquela Gisele que ela havia criado, tirar a máscara de viver. Podia libertar-se e chorar a dor de não existir. Agora ela estava livre. Não precisava articular palavra sequer, caminhar, ou demonstrar interesse com algo que está sendo dito, ou emoção ao ouvir uma música, ver uma bela arte, ou ainda prazer ao provar um prato novo que ela sabe que deveria considerar esplêndido, mas que na verdade ela não sentia sabor nenhum. Era agora só sua existência física, afinal, o que ela era senão isso? Podia entregar-se ao nada.

Ao se deitar chorava compulsivamente. Chorava por pura inércia apesar de há muito não sentir. Talvez fosse um esforço para sentir. Rezaria se ainda tivesse ânimo para isso, se ainda acreditasse. Sequer duvidava. Esse tormento –se é que podia chamar assim- durava até ela finalmente pegar no sono. E de manhã tudo recomeçava. Sabia que seria assim até o fim dos seus dias.

Luciana Caroli
Enviado por Luciana Caroli em 14/02/2014
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