A VONTADE DE VENCER

 
Durante minha infância, passei inúmeras dificuldades.
Meus pais, criados no interior, ligados a lavra de cana de açúcar, não tiveram oportunidade de estudar. Assim, o primeiro emprego de meu pai que melhor condição e esperança para nós, éramos quatro irmãos, foi o de vigia num órgão público.
Minha mãe por sua vez, querendo melhorar a renda da família, empregou-se como doméstica, tomando conta de crianças e aprendeu com uma vizinha a fazer o corte de pequenas peças como cortinas, capas de liquidificador, capas de botijão de gás, entre outros, e pequenas costuras como acabamentos e bainhas. Também aproveitou uma oportunidade numa fábrica de brincos, onde podia levar o serviço para casa.
Apesar de todos esses esforços, ainda passávamos muitas privações e as dívidas acumuladas consumiam a pouca renda.
Sendo a mais velha, considerei que seria hora de começar a ajudar em casa, e lecionava para colegas da escola na casa de uma vizinha que era explicadora.
Uma noite, meus pais me chamaram em seu quarto para perguntar se eu conseguiria ficar sem jantar. Estes eventos não eram raros, mas em vez de nascer em mim uma revolta, acabei criando forças para continuar trabalhando.
Certa noite, tínhamos água e um pão dormido para todos, que virou mínimas torradinhas.
Um dia, cansada de tantas dificuldades, fiz uma oração à Deus pedindo que nos ajudasse e jurei a mim mesma que iríamos mudar de vida para melhor. Como era boa aluna, eu mesma comecei a ficar depois da hora e ensinar os colegas de turma.
A coordenadora, observando minhas habilidades com trabalhos de recorte, colagem e pintura, manda para casa, como se eu tivesse algum tempo ou prazer nisso, várias histórias mimeografadas que eu deveria colorir. Aproveitei minha falta de tempo e a sobra de tempo de meus irmãos, e coloquei-os para colaborar comigo.
Aos quinze anos fui visitar o padrinho de meu irmão. Conversava com ele sobre minha vontade de ter um emprego de verdade, mas tinha muitas dificuldades para tirar meus documentos e sequer sabia quais eram os essenciais e como conseguí-los.
Ele providenciou tudo para mim e me vi com um jornal nas mãos procurando emprego.
Consegui um emprego de secretária em meio período numa confecção, por ser menor. Não era perto de casa, mas ficava perto de uma tia de quem gostava muito.
Meu pai revoltou-se por ver sua filha trabalhando fora. Há mais de trinta anos atrás, a sociedade conservadora não olhava as mulheres com bons olhos.
Lembro que meu pai insistiu em levar-me ao emprego. Queria saber como eram as pessoas e o ambiente. Deus ajuda sempre nas horas difíceis, e nunca perdi minha fé.
Para minha surpresa, o ambiente era exclusivamente familiar: encontramos toda uma família portuguesa responsável pela confecção.
Minha alegria duraria pouco, mas pude aproveitar bem os quase quatro meses de trabalho.
Não tendo instrução, meu pai estava no que chamavam uma folha suplementar. Funcionários com baixa ou nenhuma escolaridade só percebiam aumento salarial quando o governo afirmava ter verbas para tal.
Meu primeiro salário de menor era quase três vezes o de meu pai. Paguei logo todas as dívidas da família.
Quatro meses depois, como cursava a Formação de Professor, saiu minha chamada para fazer estágio como professora de ensino fundamental (antigo ensino primário - 1a. a 4a. séries).
Resolvi empenhar-me mais nos estudos e aproveitava todas as horas de folga para fazê-lo.
Antes do término do curso, último ano do segundo grau (ensino médio) prestei três concursos públicos e fui classificada com ótimo aproveitamento para todos: um concurso para professora do estado, outro para o município e um concurso para trabalhar como auxiliar administrativo na Universidade do Estado da Guanabara.
Sendo este último, o que oferecia melhor salário, optei por aceitar este.
Meus outros irmãos mais velhos já trabalhavam mas pouco contribuíam com meus pais, pois ambos foram pais muito cedo e tinham suas famílias para sustentar.
Como irmã mais velha, continuei assumindo a casa com meu pai, mas também comecei a guardar algum dinheiro porque queria fazer uma faculdade.
E eis que após o término do curso normal, já empregada na universidade consegui inscrição para fazer o vestibular.
Minha vida era exaustiva, pois eram muitas conduções a tomar e costumava chegar muito tarde do trabalho.
Morava no Vista Alegre, estudava em Madureira e trabalhava na universidade no Maracanã.
Prestei o vestibular para Executiva, na faculdade Estácio de Sá e passei.
Enquanto isso, coloquei minha mãe para fazer um curso de corte e costura, e a incentivei até a fazer sua formatura. Também a coloquei para estudar a noite e terminar o ensino fundamental, pois minha mãe precisava saber mais para administrar suas costuras, e isso me dava muito orgulho - ver que mamãe aproveitava bem essas pequenas oportunidades. Eu a teria levado a continuar os estudos, mas pela vida árdua, mamãe começou a sofrer do coração.
Meu pai reclamava de tudo e de nós duas. Dizia que eu estava muito moderna e estava levando minha mãe a pensar como eu. E eu em silêncio dizia: Graças a Deus!
É preciso acreditar que mudar de vida é possível sim, com esforço, trabalho e estudo.
Minha mãe passou a ser a costureira mais requisitada onde morávamos. Até que um dia, minha mãe desmaiou e descobri que ela precisava de um marca passo.
Fiquei desesperada pois por melhor salário que eu tivesse, jamais daria para adquirir um aparelho desses.
E eis que Deus intercede novamente.
Comecei a trabalhar no hospital da universidade e conheci então, diversos fornecedores de equipamentos hospitalares. No mesmo dia em que lutava para conseguir uma vaga para transferir mamãe do hospital Getúlio Vargas para o hospital da universidade, deparei-me com um desses fornecedores.
Preocupou-se com minha cara de cansada e indagou se eu estava bem. Contei a ele toda a minha luta e ele prontamente, orientou-me a pedir ao médico um formulário do SUS, onde seria possível operar minha mãe e colocar o marca passo, sem custo. Tudo transcorreu muito bem.
Como não tinha condições de cursar uma faculdade de longa duração, optei por uma das primeiras graduações tecnológicas do país. Em dois anos estava formada.
Dez anos após, este curso possibilitou que eu fosse enquadrada em cargo técnico administrativo de nível superior.
Dois anos após, estava casada e esperava meu primeiro filho, dos três que Deus me deu.
Estando mais velha, lutei muito para que meus irmãos também fizessem um curso superior. Apenas um deles, anos mais tarde, viria a cursar engenharia civil, pelo emprego que tinha na companhia de água e esgotos da cidade.
Eu realmente consegui realizar o que desejava - mudar de vida.
Custou-me tempo, dinheiro, noites de insônia, mas ainda hoje estou empregada, (trinta e sete anos dedicada a mesma empresa).
Por isso, aconselho a todos os jovens que lutam por um lugar ao sol a dedicar-se aos estudos, ter um emprego, e acreditar que é possível realizar seus sonhos de liberdade e qualidade de vida.
É fato, que contei com o apoio de muita gente boa, honesta e sincera ao longo do caminho.
E tenho a certeza, de que nada seria possível, se eu mesma não acreditasse que tinha capacidade.

 
Maria de Fatima Delfina de Moraes
Enviado por Maria de Fatima Delfina de Moraes em 17/02/2014
Reeditado em 18/02/2014
Código do texto: T4695214
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