UMA CHANCE

Um palavrão clareava a noite escura, eu já sabia o que ouviria, palavras com cheiro de vinho e às vezes vodkas baratas. Gritos violentos com agressões ecoavam pela madrugada. Sentia vergonha dos vizinhos, mas depois com o tempo já pensava que todos viviam assim, uns com gritos mais altos, outros com sussurros, mas os tapas eram todos iguais, com manchas roxas.

Lembro-me, conversando com as pessoas , meus olhos vagavam pelas peles desnudas procurando as tais manchas, sim, elas estavam lá, com certeza em algum local encoberto pela roupa.

Não achava que eu sofria, éramos uma família muito feliz, sorríamos à noite em casa quando mamãe estava bem e fazíamos nossas refeições à mesa, gostava dessa companhia, ela tomava vinho e papai a acompanhava, tudo começava com sorrisos cheirando à sobremesa de pudim de leite e sorvete de flocos; nem todas as noites clareavam com um palavrão, eram mais as dos finais de semana. Com o tempo passei a odiar as sextas- feiras que trariam os dias seguintes. Não queria ver mamãe apanhando e provocando, ela dizia que não levava desaforos, cigarro em uma mão, copo em outra. Não gostava daquele olhar de sarcasmo, pois me dava medo. As palavras de papai eram frias como navalhas e cortavam.

Eu tinha duas imagens de mamãe, ora feliz com o copo na mão, ora deitada em sua cama no quarto escuro. Queria passear no parque, queria ir ao clube, queria vê-la sem aquela garrafa que a deixava feliz, odiava o vasilhame que tinha cheiro de intruso,

Porém, preferia viver assim a ter acordado com um som que clareou a noite e não eram os palavrões, a lembrança dessa madrugada foi arrebatadora, pois ver mamãe estirada ao chão da cozinha e o sangue esvaindo-se de sua cabeça, aquele sim foi o som que me despertou para a vida, o som que acordou a madrugada e levou alguém para dentro dela e transformou a minha realidade.

Viver entre as paredes do abrigo, com corredores compridos e gelados sem o som que clareia a noite escura é bem pior. Os adultos dizem que agora eu vivo em paz, mas talvez eles não saibam que eu não conheço a palavra paz, conheço somente a palavra costume.

E foi assim que caminhei para o futuro , perdido e confuso, sonhando com um palavrão na noite escura.

Hoje papai veio me ver e pediu perdão, seus olhos choraram, não consegui encará-lo.

Soube que já saiu da cadeia e quer me levar, explicou que não foi ele quem matou mamãe ,ela quem fez aquilo, disse que se casou de novo, que seremos felizes.

Eu não sei escolher o que é melhor para mim, os corredores são opressores, as camas com seus colchões finos e cobertores que não esquentam o frio me impulsionam a ir. Há poucos dias entrou um rapaz no abrigo e começou a me pedir para fazer coisas com ele que acho que não são corretas. Então acho que vou com papai.

Fico na esperança de ouvir os gritos que acordam a madrugada , assim saberei que estou em um lar. O meu lar. Mas essa nova mamãe é meio doce, parece café com leite açucarado e bolacha recheada, ela me sorri e diz que agora vai ser diferente, sinto que meus olhos parecem de cachorro sem dono, aquele olhar comprido que só faz quem tem dor de necessidade, quem tem falta de bem querer, aquele olhar de deserto árido sem chuva, pois meus olhos são assim, secos. Ela vê isso, e me manda chorar e eu fico firme com uma carcaça protegendo minha alma de se desnudar.

Ela me abraça e seus olhos são de corações, enormes corações com dois braços de abraços, sinto-me envergonhado, pois de braços e mãos só conhecia as surras. Até papai está mais amoroso, não diz mais aqueles palavrões e seus olhos são de algodão doce. Agora, é isso que me lembro quando vejo os olhos de papai, enormes algodões doces azuis em suas mãos cansadas do trabalho.

Já não penso mais nos palavrões que acordam as madrugadas, hoje eu descobri que nem todas as famílias brigam e se batem e tem manchas roxas pelo corpo.

Agora vem de novo minha nova mamãe, insistindo para eu chorar e me limpar das mágoas, me abraça com cheiro de lavanda e me olha com seu olhar de tardes mornas, que faz minha carcaça derreter e virar água em meus olhos. Abaixo a cabeça e disfarço. Homem não chora.

Raquel Delvaje
Enviado por Raquel Delvaje em 20/02/2014
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