O CRIME

Uma aglomeração de gente alvoroçada e falante se formou. Trânsito completamente engessado numa das principais avenidas da cidade. Eram quase sete horas da manhã. O Serviço de Resgate fora acionado e já trabalhava para retirar o corpo da menina de dentro do rio que atravessa o centro urbano. Inchada. Morta. Ela estava morta! Por mais que tentasse, Flávio não conseguia concatenar o fato. Lembrou-se de quando se conheceram, ele no carro parado no sinal, ela pedindo esmolas; chegou frente à janela do veículo, pediu um trocado, ele deu, perguntou seu nome, idade, Quênia, onze anos, sobre o machucado em sua mãozinha, ela disse que foi o irmão mais velho que a queimara com cigarro, só de ruim. Contou também da mãe bicuda e prenha, do pai preso, do casebre de um cômodo na favela, onde morava com mais oito.

Por dias seguidos, a cena se repetiu naquele sinal, no mesmo horário. Havia algo em Quênia que encantava Flávio de forma arrebatadora. Não perdeu tempo, convidou a menina para morar com ele, no apartamento em que vivia solitário. Ela aceitou de pronto e, orientada a avisar a mãe, respondeu: “ninguém vai notar que fui embora”. O homem sabia que estava cometendo um crime, praticamente um rapto; de criança! Mas não conseguiu resistir. Aliás, sensatez não era seu forte.

A pequena ficou maravilhada ao conhecer seu novo lar. O apartamento de Flávio não era dos mais luxuosos, mas para quem dividia cada palmo com tanta gente, era, sim, um palácio. Ele preparou um cigarro de maconha e fumou deliciado. Ela também fumou. Comeram, conversaram bobagens e durezas – o moço se impressionou com a maturidade amarga da criança – jogaram videogame, tomaram banho, cheiraram cocaína, beberam, comeram mais, fumaram mais, conversaram mais, até anoitecer.

– Bem, o apartamento só tem um quarto, mas cê pode dormir na sala.

– Quero dormir com o senhor.

– Ah, menina danada, não faz isso. Já não tenho juízo nenhum, meus trinta anos funcionam como quinze, e cê inda me atenta desse jeito...

– Tenho tamanho de menina, mas já sou mulher.

Sem pensar muito, como era seu hábito, Flávio cometeu a violação, dominado pelo desejo. A partir daquela noite, passaram a ser um casal. Apresentou Quênia aos funcionários do condomínio e aos poucos vizinhos que conhecia, como sua irmã caçula, que veio passar uns tempos com ele.

Estava irremediavelmente entregue, dependente da existência da pequena criatura, que tornou-se o maior de seus vícios; o mais forte, o mais inebriante, o mais devastador. Alcoolista, maconheiro, cheirador e apaixonado. A menina já conhecia todas aquelas drogas, mas sob a influência do amante, mergulhou-se ainda mais em cada uma delas.

Enquanto horas, dias e meses eram engolidos na voracidade afoita do tempo, o casal realizava sua história incomum. Aos poucos, Flávio foi se tornando mais equilibrado, responsável, dedicava-se ao trabalho, pensava em consequências, media atitudes, sempre que possível; e Quênia, cada vez mais reduzida às vontades do homem, a serva amante, que se drogava por todo o dia, para suportar a solidão e um sentimento que não compreendia direito, de ausência de si mesma. Ele não permitia que ela saísse, com medo de que fosse descoberta a relação ilegal e durante o tempo em que estava no trabalho, a menina mulher se mantinha presa em casa. Não que a trancasse, nada disso, ela própria se considerava trancada. Em mundo estranho, desconhecido, que não era seu, como se expatriada, distante, esquecida, amputada de sua própria origem. Não percebia, mas perdera a identidade, até o sofrimento era diferente. Todas as noites, ao voltar do trabalho, o moço a encontrava bêbada ou drogada. Aí se banhavam, comiam, ela melhorava um pouco e trepavam. Trepavam demais. Quênia já havia passado por dois abortos, obrigada por Flávio, que não queria mais complicações. Ela fazia cobranças, ele fazia cobranças e a relação foi se embolando num lodo viscoso de tormentos e agressões. A diferença era que ele se sentia mais e mais homem, macho, dominador, poderoso, seguro, provedor e ela, mais e mais dependente, indefesa, frágil, carente, perdida, viciada. Era como se o homem tivesse acumulado somente para si toda a energia do casal, enquanto a menina murchava e se desmanchava dia após dia, porque ele devorava, esganado, seu resto de vida.

Mas ela se cansou. Durante a madrugada, Quênia se levantou da cama bem devagar, para que ele não percebesse. Aos passos e movimentos leves, cheirou, fumou, se picou, abriu a porta com cuidado e saiu, completamente nua. Flávio acordou em seguida, levou um tremendo susto ao não encontrar a amante, pulou da cama, vestiu a roupa às pressas e foi à sua procura. Já era manhã. Ao ver o tumulto na beira do rio, aproximou-se, apavorado. Ouviu rumores, a menina havia se jogado – diziam. Quênia estava morta. Milhões de agulhinhas se fincaram no seu peito, nos seus nervos, no corpo inteiro, na consciência. Procurou os policiais que registravam a ocorrência:

– Fui eu que matei.

– Mas foi um suicídio.

– Não! Eu a joguei nesse rio.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 26/02/2014
Reeditado em 28/02/2014
Código do texto: T4707139
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