Nó na Garganta

O carro parou sobre a grama, atropelando a placa enferrujada que tentava alertar para a proibição da manobra. O reflexo no metal negro movimentava-se charmoso à medida que o chaffeur abria a porta. A multidão que soluçava a despedida do parente querido interrompeu o choro. O vulto jovem, que se libertava do assento de couro, caminhou lentamente, ajustando os óculos escuros e corrigindo alguns fios de cabelo indisciplinados. Antes que se tornasse identificável para a maioria, foi percebido por um dos convidados.

- Não acredito! É o metido do Carlos.

- O que ele tá fazendo aqui? Nem gostava do vovô!

- Ele faz só pra provocar.

- E aquele carro?

- Faz de propósito. Quer sempre mostrar que é o único que deu certo.

- ... Filho da puta.

Carlos aproximou-se do grupo, redobrando o cuidado para não sujar os sapatos italianos no solo barrento. O restante da família furava sua elegância com inveja carnal. Criado em uma família humilde, envergonhava-se das tradições rurais e orgulhava-se do porte nobre que havia conquistado. Substituíra parte do nome, caipira demais para um homem de negócios, e gastara fortunas para eliminar o sotaque interiorano com um famoso fonoaudiólogo da Capital.

- O que você tá fazendo aqui?

- Bom dia...hummm..Cleberson. Você ainda não trocou esse nome ridículo?

- Olha quem fala! Sr. Carlos Vladisnei Silva.

- Já disse que não uso mais esse nome infame do nosso pai.

- Tem vergonha?

- Você poderia falar sem cuspir, por favor? Está molhando meu terno.

Além da repulsa por todos os familiares ou qualquer pessoa que o reconhecesse como aquele gabiru faminto da roça, Carlos tinha um trauma em especial. Quando criança crescera rápido demais e perdera as poucas roupas que tinha. Filho mais velho de oito criaturas, sofreu a infância descamisado, raspando a sola no chão disforme e improvisando panos velhos contra o frio. Naquele tempo jurara que a primeira fortuna que ganhasse seria investida em roupas caras.

E assim foi.

Virou um conhecedor de grifes, assimilando tendências e contratando costureiros particulares. Trazia tecidos sofisticados do exterior e, cheio de revistas européias com páginas marcadas, encomendava seu próximo terno. Assistia desfiles na primeira fila e anotava qualquer combinação que pudesse vestir sua nova personalidade. Destacava-se nos eventos e mantinha seu círculo social ativo. Carlos se tornara um exemplo de elegância e sofisticação.

- Por favor, por favor! Respeitem o morto!

A revolta rouca do padre lembrou Carlos sobre o real objetivo do reencontro sádico: o avô falecera e aquela seria a chance de estar por dentro dos últimos detalhes da herança. Até aquele momento não reparara no corpo imóvel do falecido. Quando alguns vivos abriram espaço suficiente para que Carlos se aproximasse, sem ser tocado pelo suor enjoativo dos membros da família, conseguiu enxergar seu avô deitado.

Tomado por uma força descomunal, sentiu a palidez no próprio rosto, acompanhado dos lábios trêmulos. Aproximou-se do defunto chamando a atenção de todos. Queria tocá-lo de qualquer maneira, agarrá-lo. O suor continuava valente e estimulava Carlos a atropelar quem impedisse seu caminho. Sua jornada hipnótica em direção ao avô confundia a todos.

- O que ele tem?

- Eu sei lá!

- Parece que ele está transtornado.

- Peraí! Aquelas gotas são lágrimas?

- ... Parece... que sim.

- Mas logo o Carlos? Não acredito!

- É nessa hora que a gente sente o baque.

- Se é!

Enquanto a multidão seguia seu desespero, Carlos pulou de braços abertos sobre o caixão. Seu peso fez com que caísse junto com o corpo na sepultura. Ninguém gritou em sua defesa. Um dos primos, inclusive, acenou para que o coveiro de olhos tortos despejasse terra sobre ambos. Sem cerimônia, o bizarro ser apenas obedeceu. Já assistira dramas muito piores. Cada convidado aproveitou para fazer a última prece, alguns desejando paz ao espírito do velho e outros agradecendo o fim macabro do parente intruso.

Mas dentro da cova, agarrado ao corpo do avô, Carlos ainda se movimentava. Com os olhos cheios de terra e a voz ofegante, repetia suas últimas palavras:

- Terno preto com gravata azul? Nem fodendo!

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 01/05/2007
Reeditado em 05/05/2007
Código do texto: T470766
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