013- O MURO

Tulio Giminez não queria. Foi forçado pelas circunstâncias e bateu de frente com o Padre Ranzine, criando a maior encrenca.

A pendência entre os dois era coisa antiga. Foi quando Tulio Gimenez se estabeleceu como comerciante no ramo secos e molhados, gêneros em geral, ferragens e tecidos na pacata cidade de São Roque da Serra.

Começou assim: as freiras do Colégio N. Sra. das Dores compraram um enorme terreno onde construíram o Colégio e uma capela estilosa, com torre e corpo no velho estilo gótico. Desde a chegada das irmãs sentiu-se incomodado o Padre Ranzine, ciumento do seu poder.

Daí o Padre Ranzine, por meio da Paróquia de S. Roque, comprou uma área de tamanho igual ou maior, adjacente ao terreno do Colégio, a fim de construir um orfanato.

Na época em que foram negociados, tais terrenos ficavam na saída da cidade. Numa estrada. Eram de pouco valor, grande parte era constituída por brejos e pântanos conhecidos como Lagoinha do Samuel.

Enquanto as construções – o colégio, a capela e o orfanato – iam sendo erigidas, aparece Tulio Gimenez. Recém-chegado da Espanha, comprou o terreno em frente ao colégio, iniciou a construção de sua casa. Abriu as portas do que viria a se tornar o importante estabelecimento, sob a denominação de “Casa Giminez – Secos e Molhados”.

A estrada virou avenida, toda a região foi urbanizada, isto é, as ruas e avenidas foram demarcadas. Certo espaço foi reservado para uma praça. O progresso fez surgir um florescente bairro onde antes era campo, brejo e pântano.

A urbanização, concebida nas salas da Prefeitura, visava principalmente à abertura de novas ruas, a fim de valorizar os terrenos do outro lado da Lagoinha. Lá no alto ficava um bom trato de terra de Enrico Montecapello, influente personagem na política da cidade, imediatamente integradas à cidade pela urbanização. Os alqueires de terras passaram a ser lotes urbanos, valorizando-se da noite para o dia.

O traçado da principal rua que dava acesso ao novo bairro passava justamente entre os terrenos do colégio e do orfanato, que, a esta altura, já estavam delimitados e murados.

Nem as freiras do colégio nem o Padre Ranzini concordaram em ceder a área para a abertura da rua. Mesmo após a desapropriação legal, um muro continuou obstruindo o caminho. A Prefeitura incapaz de realizar a abertura da via de acesso à Lagoinha. Na verdade, o prefeito tentava diplomaticamente evitar um confronto entre a Prefeitura e a Paróquia.

Os acontecimentos se precipitaram quando um caminhão carregado de tijolos abalroou o muro, derrubando-o. Tendo perdido os freios, adentrou-se pelo terreno que era a rua projetada, derramando milhares de tijolos sobre o terreno em litígio.

Por algumas semanas, o muro no chão, diversos veículos e muitas pessoas transitaram pelo terreno . Quando o Padre Ranzine soube do que estava se passando, tratou imediatamente de reconstruir o muro.

Não passou muito tempo, eis que de novo contece o inusitado : um outro caminhão, por imperícia do motorista, chocou-se de frente com o muro, com danos graves no veículo e ferimentos no motorista.

Tulio Gimenez socorreu o motorista e mandou Licurgo mais outros empregados limparem a área. Os homens atarefados com os entulhos nem notaram a chegada do Padre Ranzine.

- Então, camaradas, derrubando o muro outra vez, hein ?

- Não, seu Padre, estamos limpando o terreno. O caminhão do Higino arrebentou o muro e esparramou a carga toda aqui dentro do terreno.

Padre Ranzine suspeitava de que a coisa fora propositada. Tinha gente interessada na abertura da rua.

- Isso deve ser coisa arranjada pelo Gimenez.

Padre Ranzine era assim mesmo: dono da verdade, não media as palavras. Falava o que lhe dava na telha. No domingo, do púlpito da igreja matriz, desancou as “forças ocultas” que teimavam em destruir o muro.

- Trata-se de propriedade paroquial, ninguém ia fazer por ali passagem para a Lagoinha, lugar de gente sem ter o que fazer e mal intencionada !

Referia-se aos cinco ou seis pescadores que iam pegar pequenos lambaris na Lagoinha. Sem citar nomes, acusava também Tulio Gimenez e outras pessoas que queriam a abertura da rua.

Tulio Gimenez, católico por tradição, presente à missa, ouviu quietamente o sermão, mas sem aceitar a reprimenda. No dia seguinte, procurou o padre na casa paroquial:

- Padre, o senhor não está sendo correto, tratando de negócios da paróquia no sermão da missa. Aquele assunto do muro é assunto nosso. Não fica bem enfiar pelos ouvidos dos paroquianos. E quero que saiba o seguinte: meus empregados lá estavam limpando o terreno para a reconstrução do muro. Mas de agora em diante, eu mesmo vou fazer todo o empenho pra que a rua seja aberta sim, custe o que custar.

Tendo dito o que precisava, Tulio Gimenez virou as costas.

- Isto é uma declaração de guerra ! – gritou da janela para Tulio, no portão. – Se é encrenca que procura, já está metido nela até o pescoço !

A guerra começou.

Tulio procurou Enrico Montecapello, juntos estabeleceram um plano.

- Va bene, signor Tulio !Quella rua deve ser aberta. A Lagoinha é um bairro separado da cidade. Só abrindo a rua se conserta a situazione .

Nos meses seguintes, o muro foi derrubado cinco vezes. A cada derrubada, o Padre Ranzine mandava reconstruir, e a cada vez se tornava mais irado contra as “forças ocultas”. Ninguém jamais conseguiu flagrar os demolidores, pois as derrubadas eram feitas na calada da noite. Nem mesmo os guardas particulares do Padre Ranzine conseguiram ver os autores do delito.

Entre uma demolição e a reconstrução do muro, mais gente transitava pelo local, trilhas batidas marcavam o terreno de passagem obrigatória para quem ia da cidade à Lagoinha.

- É um insulto, um desrespeito à propriedade da Igreja ! -- prosseguia a guerra do Padre, que esbravejava nos sermões das missas dominicais.

Tulio e Enrico, católicos, não deixaram de assistir às missas, cada um no seu lugar preferido. Não queriam que a aliança se tornasse conhecida do Padre.

Na prefeitura, ninguém tomava partido na surda guerra entre os três poderosos.

Como o muro era derrubado, ninguém sabia. Numa tarde estava lá, na manhã seguinte estava no chão. Numa ocasião, não só houve a demolição como todos os tijolos foram carregados. Na manhã seguinte, só os restos de reboco e marcas de rodas de charretes e carroças.

Noutra vez, durante a reconstrução, desapareceram todos os materiais dos pedreiros: carrinhos, ferramentas, prumos, etc. Os pedreiros exigiram do Padre o pagamento do material furtado.

- Guerra é guerra! Os ímpios, os enviados de Satanás não prevalecerão contra as forças do bem, da Igreja ! – bradava o Padre do púlpito.

E foi justamente um evento da guerra que foi a causa do fim do conflito. A pendenga já durava mais de 15 anos, ao terminar a Segunda Guerra Mundial.

À volta dos pracinhas, que festa ! Vitoriosos, foram recebidos pelas autoridades na estação da estrada de ferro com discursos, homenagens para os heróis. Colocados em carros abertos, foram conduzidos por toda a cidade. A população nas calçadas, aplaudindo o evento .

A Prefeitura, no afã de levar os soldados do Glorioso Exército por toda a cidade, fez com que o cortejo passasse pela Lagoinha, justamente pela rua do litígio – cujo muro tinha sido destruído, mais uma vez, por aqueles dias.

A passagem da caravana – uns 5 carros abertos mais um caminhão com populares, e outros poucos veículos, foi a consagração definitiva do uso do trecho da rua.

O padre desistiu de levantar de novo o muro. A prefeitura tratou logo de colocar guias, calçou rapidamente a rua com paralelepípedos, fez as calçadas. Os brejos foram aterrados. O córrego, canalizado.

E como final feliz para a guerra entre o Padre Ranzine, Gimenez e Montecapello, a rua recebeu o nome apropriado de Rua da Paz.

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ANTONIO ROQUE GOBBO - BELO HORIZONTE - 28.fevereiro.2.OOO

Conto # 13 da Série Milistórias – Publicado em “A Loucura do cristal”

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 27/02/2014
Reeditado em 08/09/2014
Código do texto: T4708934
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