PEDRIM MENTIRA

São Roque da Serra. Cidade pequena do interior de Minas onde todo mundo se conhece. Onde todo mundo tem apelido. Zé Carapina, Jairo Curadô. Dona Maria-das-Rendas faz crochê. Seu Bruno da Farmácia, Benedito Bacurau. O professor Zé-de-Alencar tem nome de registro impronunciável: Sarvalaperbos Odutiesque. Zé Padeiro, Mariinha Cabeleireira. Artur Seu-Cavalo-Virou-Égua, Emídio Carne-Seca.

Tonho das Tintas é pintor. E tem o Pedrim Mentira. Esse já teve uma pá de apelidos: na escola era Pedrinho Xulé. Não precisa explicar a causa do apelido. Depois, virou Pedrinho Canivete: foi uma fase em que colecionou canivetes, teve mais de duzentos. Mais tarde comprou uma carrocinha pra fazer entrega de pão de manhãzinha, pela cidade. Sua freguesia tachou-lhe o apelido de Pedrinho Padeiro.

Gostava de caçadas, tinha uma matilha de bons perdigueiros, organizava expedições de caças no Mato Grosso, Goiás. Foi, então, o Pedrinho Caçador. Mas o que ficou mesmo foi o último, que poderia constar do seu epitáfio: Pedrim Mentira. Esse foi, sem dúvida nenhuma, o apelido mais apropriado para o famoso personagem de São Roque da Serra.

Não era difícil pegar um apelido na cidadezinha. E quando alguém recebia um, podia contar que ia até morrer. Ou modificar-se, como foi o caso do popular Pedrim Mentira. Assim, até mesmo o que poderia ser pejorativo, era aceito pelo cidadão. O apelido assumido tornava-se tão importante — ou até mais importante — que o próprio nome de batismo.

Pedrim Mentira usava e gozava do apelido. E não se cansava de contar a história de uma caçada que deu origem ao apelido. Evidentemente, uma gozação dos amigos com o ex-Pedrim Xulé, ex-Pedrim Canivete, ex-Pedrim Padeiro, ex-Pedrim Caçador.

A história de Pedrim Mentira recorda uns 15 anos antes, retorna àquela ocasião em que Pedrim Caçador fazia suas excursões pelo interior bravo, pelo sertão, com os companheiros, caçando pacas, tatus, cotias sim, veados e antas (até uma onça foi morta pelo grupo de Pedrim ).

Caçadas essas bem documentadas pelas carcaças dos animais, por couros e outros troféus das presas abatidas.

-- Aí, olha só o tamanho do pêlo da jaguatirica. Essa pesou mais de 200 quilos.

E nos últimos tempos de caçadas, algumas fotografias atestavam o tamanho dos animais abatidos, confirmavam as longas histórias dos caçadores.

-- Taí a foto que não me deixa mentir. - Quem tirava as fotos era o Aristeu Retratista, que acompanhava o grupo de caçadores munido de boas cartucheiras e ótimas Kodaks.

Então, as histórias passaram a ser documentadas por testemunhos irrefutáveis. Como todo bom caçador, os exageros vinham por outras vias, noutros causos. Daí a fama de Pedrim Mentira, que não exagerava no valor de suas peças de caça. Mas que, ao narrar um causo, um causo só, consagrou-se definitivamente como Pedrim Mentira.

Causo seguinte, narrado por ele mesmo:

Pois então chegamos na beira do rio Negrinho , onde terminava a marca da onça. Pelos sinais das patas da bicha, era animal pra mais de 100 quilos, uma fera armada de poderosas patolas. Com uma patada só, matava qualquer um de nós que fosse pego desprevenido.

Nossa expedição era de nove companheiros, montamos acampamento a uns duzentos metros da beira do rio. Era já umas quatro da tarde. Armamos as três barracas, o Chico Galinho , encarregado da cozinha foi logo acendendo o fogo e batemos as vizinhanças divididos em dois grupos de quatro caçadores.

Ah! Ia me esquecendo, o Chico Galinho não caçava. Ele ficava tomando conta do acampamento, fazendo comida. Ele gostava de caçar, mas um acidente com uma cartucheira deixou-o coxo, perdeu a destreza no caminhar e então, ficava tomando conta do acampamento. O que exigia coragem e atenção, pois por diversas vezes ele abateu, com sua espingarda, cobras e pequenos gatos-do-mato e até um tamanduá que entrou sem querer pelo acampamento.

Então, fomos pra beira do rio. Lá cada qual tomou uma posição, a fim de tocaiar a onça cuja fama corria pela região. Eu e meu amigo Lindolfo Dias fizemos nosso apoito numa pequena clareira. Amassamos bem o capim, pra ficar mais confortável a nossa espera pela noite adentro.

A tarde já ia acabando, eram cinco e meia, me lembro bem, porque ao me preparar para a longa espera, procurei um lugar onde colocar meu relógio de bolso, sabem como é, gosto de ver as horas, sou minucioso nessa questão de tempo. Então, meio que agachado, meio que deitado, procurei um lugar onde dependurar meu Ômega Ferradura, e só achei um arbusto, de uns trinta centímetros, assim sobre minha cabeça. Num galhinho do arbusto dependurei o relógio, com corrente e tudo.

— Tudo bem aí, Lindolfo? perguntei pro companheiro.

— Tudo certo, camarada. A vista daqui é muito boa, dá pra ver direitinho a barranca onde a bichona vem beber água. Tá vendo lá em baixo, naquelas moitas amassadas? É ali que a fera chega. É só esperar.

Passamos a noite revezando na vigia do bebedouro. Dormi algumas horas, Lindolfo outro tanto, mas foi Miguelito Jornaleiro com Vitor Chevrolé que acertaram a bruta, numa espera que fizeram uns quinhentos metros rio acima.

Ouvi o PAM ! da cartucheira de Miguelito, e o tiro seco do revólver de Vítor. Estava dormindo, acordei num pulo, e correndo, lá fomos eu e Lindolfo no rumo dos tiros. Quando chegamos, a malhada já sangrava e nem mexia, mortinha da silva, dois tiros certeiros na cabeça e no peito.

Beleza de animal. Uma fêmea de pesadas manoplas e dentuça poderosa. Calculo que tinha uns noventa, cem quilos. Esfolamos ali mesmo, na beira do rio, levamos só o couro e a cabeçorra. Zé Galinho sabia como curtir o couro e limpar a cabeça, conservando de tal forma que seria um lindo troféu para a sala de visitas do Miguelito - ou da garagem do Vitor Chevrolé, eles que mataram a enorme onça.

Do acampamento voltamos para a fazenda do Seu Izaías Machado, que tinha dado notícia da fera e dos estragos que a mesma estava fazendo no seu gado. A exibição do couro da tigresa causou sensação na fazenda, onde ficamos apenas um dia para descansar e arrumar nossa tralha no caminhãozinho do Vitor.

Partimos no outro dia cedo, de volta pra casa. Já tínhamos rodado bens uns cem quilômetros, quando dei fé de que havia esquecido meu Ômega na beira do rio, dependurado no galhinho do arbusto, conforme já lhes narrei.

— Que azar ! — comentou Miguelito, sentado ao meu lado, na carroceria do caminhão. — Como é que cê vai fazer?

— Tá perdido, não dá pra voltar. É uma pena, era relógio de estimação, foi presente do meu pai. Mas tá perdido.

.......

Continuamos nossas caçadas, nossas aventuras. Todos os anos. Em cada ano a gente ia pra um lugar diferente, jamais voltamos a um local, uma região ou um rio. Até que, uns dez anos depois dessa famosa caçada de onça na beira do rio Negrinho, que fica em Goiás, a turma resolveu voltar. Dos nove caçadores que participaram daquela famosa expedição, apenas cinco estavam dispostos a voltar, e refizemos o caminho até a fazendo do seu Izaías Machado.

— Óia, gente, a caça aqui já acabou. Só tem mesmo é umas antas mais pra beirada do rio.— A informação era do filho do fazendeiro: que o seu Izaías estava pra Goiânia, em tratamento de saúde. — Se vocês querem vou junto.

— Não precisa, obrigado, nós estamos mais é a fim de bater mato, se aparecer alguma caça, tá bom, se não...a gente se diverte mesmo assim — Falou Lindolfo em nome dos companheiros.

E assim foi que chegamos no mesmo local do acampamento anterior, já fazia tempo, uns dez anos, calculou Miguelito. Armamos acampamento. Era por volta de meio-dia, ainda dava pra fazer algumas explorações, procurar sinais de animais na beira do rio. Foi a nossa providência: em grupos de dois ou três, saímos , cartucheiras nos ombros, embornais com munição e matula.

Voltei exatamente ao local em que tinha esperado a onça, bati o mesmo capim a fim de assentar-me e descansar, peguei um pedaço de carne-seca do embornal e comecei a mascar, lembrando de todas as cenas, dos detalhes da noite passada ali.

Foi então que, no silêncio da mata, comecei a ouvir um barulhinho persistente, um tique-taque familiar. Fiquei atento. Devagar, muito devagar, fui virando a cabeça na direção do barulhinho: vinha do alto de um pé de jatobá, de um galho elevado uns 10 metros. Ao descobrir a origem do tique-taque, quase desmaiei de susto: pendurado no galho daquela árvore que era apenas um arbusto há dez anos passados, balançando ligeiramente , faiscando e reverberando aos raios amarelos do sol do meio-dia , lá estava...o meu inesquecível relógio, meu Ômega Ferradura!

......

E assim termina a história do Pedrinho Caçador, conforme suas próprias palavras. Só que ele se esquece de completar: a partir do dia em que fez esta revelação pela primeira vez numa roda de amigos, ficou sendo conhecido, daí pra frente, definitivamente, como Pedrim Mentira.

ARGOS = ANTONIO ROQUE GOBBO = Belo Horizonte = 5 de maio de 2000 =

Conto # 20 da Série Milistórias

Publicado em “A Loucura do cristal”, volume 1 da Coleção Milistórias

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Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 01/03/2014
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