O PROFESSOR DE PORTUGUÊS

-- Licença, 'fessor ?

-- Atrasado, hein, seu Jorginho ! Pode entrar.

Jorginho vai para sua carteira, esbaforido, suado e com a roupa amarfanhada. Os colegas de classe cochicham e dão risadinhas. O professor Odutiesque continua a explicação da lição interrompida com a chegada do discípulo retardatário.

-- Se fosse na aula do Irmão Gaspar, você num entrava. - Comentário do Teófilo, quando foram para o primeiro intervalo entre as aulas.

-- Nem pensar. Entrei mesmo porque era a aula do Zé-de-Alencar. E para não perder as outras aulas, porque o português que ele ensina é a mesma desde o primeiro ano. Não tem importância a gente perder as aulas, já sei tudo de cor e salteado.

Jorginho tinha razão. O professor Odutiesque sabia muita literatura e curiosidades sobre a língua portuguesa, mas era completamente desligado da gramática da língua pátria. Quem, como Jorginho, freqüentasse suas classes, tanto fazia estar na primeira como na última série do curso ginasial, que não aprendia nada de novo.

-- É até bom. Assim, quem já viu a matéria nos outros anos, pode ficar tranqüilo. O Zé-de-Alencar é bom também pra dar notas. Ele não reprova ninguém.

Entretanto, como que para compensar seu alunos dessa mesmice gramatical, o professor anima suas aulas com anedotas e causos dos grandes literatos, traz para os alunos listas de palavras exóticas e jogos de palavras.

-- Como é que você entrou, depois que a aula começou? O Irmão Amadeu fecha o portão pontualmente às sete e meia.

-- Trepei naqueles galhos de primavera que estão tombadas sobre o muro. Subi por um galho mais forte e pulei pra dentro.

A gargalhada de Teófilo atravessou todo o pátio, chamou a atenção de todos os colegas que se aqueciam sob o suave sol de abril.

-- É por isso que você chegou todo "amassado" e sujo. Até com um arranhão na testa. Aqueles galhos são cheios de espinhos !

Depois do almoço, Jorginho saiu em direção à Praça Central. Encontrou-se com diversos colegas: Giovane, Ramirez, Licurgo, Afonso. Juntos passavam os momentos de folga na praça. Mas naquela tarde tentavam cumprir o para-casa dado pelo professor, um enigma mais parecido com mistério policial do que tarefa de português.

-- Gente, temos que encontrar esse tal de caminhão de balas e ver o que é que ele tem de diferente. - Giovane está preocupado, precisa aproveitar a nota de português para aumentar a sua média e sair do buraco que fora sua classificação no mês anterior.

A incumbência dada pelo professor Odutiesque era realmente muito estranha: os garotos teriam de procurar pela cidade um caminhão de entregas de balas que estava na cidade por aqueles dias. E anotar tudo o que pudessem sobre o veículo, o que mais chamasse a atenção dos alunos.

-- Cêis sabem que caminhão é esse ? - Licurgo brinca com Jorginho, puxando sua camisa.

-- Descobri que o nome da fábrica é "Ailiram". - Depressa Ramirez informa à turma.

-- Ei! Já vi esse caminhão. Tá parado perto do Bar do Ponto. - Jorginho se lembra de ter passado pelo veículo quando vinha para a praça.

-- Vamos lá ver.

E foram. Lá estava , de verdade, o veículo estacionado ao lado do melhor bar da cidade. Cercaram-no com curiosidade, começaram a vistoria. Chegou o motorista que era também o entregador das balas e doces transportados no seu caminhão.

-- Curiosos, hein, garotos?

Licurgo, que estava agachado, olhando por debaixo, levanta-se num salto. Jorginho, tímido, fica vermelho: é como se tivesse fazendo alguma coisa errada.

-- A gente tava só olhando o caminhão. Bonito, né?

O motorista mostra-se afável, distribui algumas balas para os garotos. Sobe no veículo e zarpa. O escapamento, com defeito, faz um barulho de motocicleta.

-- Puxa vida, deu azar ! A gente não viu nada.

-- Anotei o número da placa.

— Mas o Zé-de-Alencar é um chato, nunca vi um dever para casa desse jeito !

No dia seguinte os trabalhos da "pesquisa" são apresentados. Muitos alunos, além da turminha de Jorginho, tinham observado o caminhão nas suas entregas pela cidade. Outros não se deram ao trabalho de fazer o para-casa recomendado pelo Professor Zé-de-Alencar.

Começaram os relatórios.

-- É um caminhãozinho amarelo, com uma listas pretas na parte de baixo. -- informou Licurgo.

-- A Chapa é JP-17 - 04 - 44 . Da cidade de Marília. --Jorginho detalhou.

-- Vende e faz entregas de balas. A marca é Airiliam, tá escrito nas laterais. - Outro garoto falou do fundo.

E assim foi. Após esgotadas todas informações (que o professor Odutiesque relacionou no quadro-negro) os meninos ficaram aguardando a apreciação e os comentário do mestre.

-- Agora, quero que vocês prestem bastante atenção. Quem é capaz de relacionar duas informações aí do quadro-negro a um código, a uma palavra escondida?

Silêncio profundo e misterioso desceu sobre a classe.

-- É o número da chapa: tem uma data . -- Uma vozinha arriscou lá do fundo.

-- Bem observado. Mas, com qual outra informação aí no quadro ela se relaciona? --Observou o professor. -- Não, não é a chapa.

De repente, levantando-se de sua carteira perto da janela, Zezito quase derruba seus livros, no afã de falar da solução do mistério:

-- É a marca da fábrica ! É o nome da cidade, de trás pra frente: Airiliam é o mesmo que Marília, ao contrário.

-- Muito bem, Zezito ! É isso mesmo! E Marília, como o Jorginho já observou, é a cidade mencionada na chapa. Evidentemente, o local onde está a fábrica de balas Airiliam. Merece um dez com pontinho.

Zezito foi o herói do dia, da semana, do mês. O professor era liberal nas suas notas aos alunos, distribuía oitos, noves e dez com liberalidade. Mas um "dez com pontinho" era realmente o máximo ! Claro que não agregava valor maior à nota 10, mas o efeito moral era supimpa!

Nas aulas seguintes, os alunos foram descobrindo (incentivados pelo professor) inúmeros casos de marcas comerciais e nomes de pessoas que eram iguais ao primeiro "enigma" Airiliam>Marilia".

-- Professor, tem a marca de máquinas de costura "Leonam". Papai falou que é o nome do dono da fábrica, de trás pra frente. -- Informação do Carlos Alberto. -- Leonam de trás pra frente é Manoel. Tá certo?

-- É isso mesmo! - confirma o professor. --

-- Tem esta marca de mariola que também deve ser o nome do dono, de trás pra frente. -- Ronaldo exibia um invólucro da bananada "Ojuara". -- Olha aí, o nome do dono deve ser Araújo.

Apareceram outros nomes exóticos, que se explicavam ao serem lidos de trás pra frente: Onaireves Ganimedes, de Salvador, Bahia: Onaireves é Severino ao contrário. Odnumiar Mendes, industrial que faz papel de bambu no Ceará: leia Raimundo ao contrário, e encontrará Odnumiar.

Jairo achou o nome de um repórter de revista chamado Sarfic Ramos. Lido ao contrário, achava-se a interessante expressão que nada tinha a ver com o repórter: somar cifras

Passar dessas curiosidades para os palíndromos foi um passo.

-- Palíndromo, conforme diz o dicionário, é uma palavra, frase ou verso que tem o mesmo sentido ao ser lido de trás para a frente, da esquerda para a direita e vice-versa.-- As explicações do professor eram bem terra-a-terra, todo mudo compreendia na primeira vez.

-- Por exemplo: anilina, matam, mexem, rodador, reger, sopapos, sururus. E para a semana que vem, quero que cada um de vocês organize sua lista de palíndromos. Vamos ver quem consegue mais.

E assim iam acontecendo as aulas do professor: curiosas, cheias de novidades, completamente diferentes.

E que tipo era o professor Odutiesque ! Estava pelos quarenta anos, muito magro e completamente careca. Trajava sempre um terno cor de cinza, camisa branca e uma indefectível gravata borboleta. Passava por elegante, seu terno com os vincos perfeitos, limpo, bem como limpos e bem engraxados eram seus sapatos pretos, de sola fina.

Seu passatempo predileto era elaborar os problemas de criptogramas, palavras cruzadas, caça-palavras, esses tipos de desafios e testes feitos com palavras. Já tendo solucionado TODOS os livros e revistas especializados em palavras cruzadas e afins, passou à elaboração dos problemas. Mandava seus trabalhos para jornais e revistas e era muito publicado.

Lia muito e de tudo. Dos clássicos aos pasquins, tinha uma memória excepcional, citava Camões com a mesma facilidade com que reproduzia um diálogo de uma seqüência de histórias em quadrinhos.

— Professor, trouxe pro senhor uma revistinha de palavras cruzadas. -- Ofereceu Wander e o mestre recebeu com agrado. Uma revistinha dessas sempre assegurava uma nota melhor no final do mês, e Wander, relapso nos estudos, usava tal estratagema para se classificar.

Sua vida particular era um enigma, bem como sua biografia. Pensavam alguns que era estrangeiro, outros duvidavam. Afinal, que professor de fora iria se dedicar tanto assim ao nosso idioma a ponto de falar corretamente, sem sotaque, e entrar pelos segredos e mistérios da literatura portuguesa?

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Contudo, o enigma maior, o mistério que nunca foi proposto aos seus alunos e que nunca foi revelado aos seus contemporâneos, este o Professor Odutiesque levou para o seu túmulo - literalmente.

De pé em frente ao túmulo do inesquecível professor, o Doutor Jorge de Pádua (Jorginho nos tempos de estudante) relembra as animadas aulas, pensando qual o significado de nome tão esdrúxulo. Evidentemente de origem grega . Mas que nome estranho. Não era à-toa que a gente o chamava de Zé-de-Alencar... e ele não se importava de ter tal apelido.

Já ia saindo, quando num olhar rápido, Dr. Jorge descobre o porquê da obsessão de Odutiesque pelo jogo de palavras.

Na placa obtuária do professor estava registrado:

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Aqui jaz

Professor Sarvalaperbos Odutiesque

Atenas = 12.4.1901.

S. Roque da Serra = 5.10.1975

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ARGOS = Antonio Roque Gobbo - Belo Horizonte - 30 de junho de 2000

Conto # 33 da série Milistórias

Publicado em “O Espião de Bagdá”, vol. 3 da Coleção Milistórias.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 05/03/2014
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