O ESTILINGUE

Valtinho foi quem primeiro apareceu com um estilingue no meio da turma. Feito por ele mesmo, as tiras de borracha amarradas numa forquilha de jabuticabeira. Com seu canivete afiado, ficou fácil fazer o brinquedo que era transformado em arma de ataque. Usou duas tiras de borracha cortadas de uma velha câmara de ar, mais um pedaço de couro de tamanho certo para colocar a pedrinha. Conseguiu um equilíbrio muito bom: as tiras de elástico esticavam-se com facilidade, ajudando no arremesso da pedra.

Foi um sucesso desde que apareceu pela primeira vez no meio da turma com seu estilingue. O primeiro, Valtinho conservou para si. Fez mais cinco ou seis, que negociou com os amigos: trocou por gibis, por uma bola de cobertão quase nova, obteve do Carlos Alberto um pião com fieira e com Anor trocou por mais de 20 bolinhas de gude.

Em pouco tempo, desde o aparecimento do primeiro, todos os garotos do quarteirão tinham seus estilingues. Foi uma onda que pegou. Reunidos à tardinha, em frente do empório do seu Zito, faziam concurso para ver quem tinha melhor pontaria. Atiravam em latinhas vazias, colocadas do outro lado da rua. O movimento naquela hora era quase nenhum, e de longe podiam-se ouvir os estalos e tinidos dos pedregulhos amassando as latas.

Não, não foram todos os garotos da turma que tinham estilingues. Luiz e Júlio, filhos do Zé Ferreira, não podiam. Tinham muitas coisas para trocar por estilingues com Valtinho: pedaços de fitas de cinema (alta cotação), álbuns de figurinhas completos (de aviões, um verdadeiro tesouro), estiletes para jogar finca. Mas não podiam ter estilingues, o pai não queria.

— Pra fazer estilingue é preciso cortar galhos de árvores. Aí já começa o mal do estilingue. Não se deve cortar galhos de árvores assim à-toa. — Na sua voz tranqüila, ia explicando os perigos do brinquedo. — Depois, o estilingue é mesmo uma arma, pode ser usado para matar passarinhos, derrubar caixa de marimbondos e quebrar vidraças. Não, aqui em casa não entra estilingue, vão brincar com outras coisas.

Júlio não se incomodou nem um pouco com a proibição do pai. Estava mais a fim de fazer seus pequenos cadernos de animação . Era bom no desenho. Conseguia pequenos blocos de papel, nos quais desenhava figuras, geralmente caubóis montados em cavalos. As figurinhas desenhadas em seqüência se animavam quando o bloco era folheado rapidamente com os dedos: cavaleiros caindo de cavalos, ou sacando sua arma, coisas bem simples, mas muito bem boladas.

Se Júlio não deu a mínima importância aos estilingues dos amigos, o Luiz ficou doidinho para ter um. Como não podia, (escondido, nem pensar !), passou a acompanhar Valtinho sempre que ele estava com o seu. Quer dizer, os dois passavam juntos as tardes inteiras treinando pontaria e amassando as latas com as pedradas certeiras.

Pelos lados do ginásio, ficava o Buracão. Começava na própria avenida que ia do centro da cidade ao campo de aviação, passando pelo ginásio. Era um perigo passar pela calçada no trecho onde começava a enorme voçoroca. Sem nenhuma proteção, o barranco despencava-se por mais de 15 metros. Mais de um cachaceiro já tinha perdido o pé e rolado ribanceira abaixo. A sorte de tais desavisados é que por toda a encosta do barranco cresciam mamoneiras e capim gordura e as quedas não eram fatais.

O fundo do Buracão era um brejo só, coberto por tábuas. Corria um filete d’água que formava um pequeno poço, bom de se nadar. Local predileto dos garotos pobres que moravam nas imediações, para se refrescaram nos dias quentes. Pelados, não se importavam de serem vistos pelos transeuntes da avenida, lá em cima.

Os paredões rodeavam o Buracão por todos os lados, havendo apenas uma estreita saída, no extremo oposto da avenida, por onde a água escoava. Dali pra frente, era o córrego do Lava-pés. Do alto dos paredões tinha-se uma esplêndida vista de todo o cenário, principalmente do poço e de seus usuários.

E foi no alto do paredão que Valtinho fez seu posto de observação. Instalou-se à sombra de frondosa mamoneira, com os bolsos cheio de pequenas pedras e caroços de mamona. Sentava-se na beira do paredão a pique, os pés balançando, livres no ar. Olhava os garotos lá em baixo, nadando, seus gritos de alegria chegavam aumentados pelos ecos nos paredões.

A tarde estava clara, de sol quente. Luiz acompanhava Valtinho. Os dois, sentados na sombra, calados, imóveis, eram quase invisíveis. Valtinho tirou do bolso as pedras e colocou-as ao seu lado. Assim como quem não quer nada, com muita calma, colocou um pedregulho no estilingue , fez pontaria e plaft ! A pedra caiu bem no meio do poço, por pouco não acertando um dos garotos.

— Abaixa, Luiz !

Surpreso, Luiz abaixou-se a tempo de ficar oculto dos olhares dos garotos pelados. Agindo com presteza, mesmo agachado, Valtinho disparou mais uma, duas, três pedrinhas, numa seqüência alucinante, atingindo os meninos lá em baixo.

Os gritos chegaram claros até em cima do barranco. .

— Pára, Valtinho, cê machuca os meninos ! — Luiz não gostou da brincadeira, gritou com Valtinho.

— Cala a boca! Olha lá os bestinhas .

Mais gritos chegavam do fundo do Buracão.

— Ai, desgraçado, me acertou!

— Sai daí, filho da puta !

Um garoto, o maior, pega pedras e atira para cima, a esmo, não sabe de onde vêm os projéteis. Inutilmente. Os demais garotos fogem, correm, saindo pelo estreito caminho. Valtinho ainda atira mais pedras. Na afobação da fuga , um dos meninos deixou sua roupa na beira do poço.

Valtinho ria, gozando a situação. Luiz levantou-se.

— Assim não fico mais com você. Daqui a pouco eles descobrem a gente, vêm os pais deles, estamos fritos. Vou embora.

— Tá com medo, covarde? Vai, vai, ocê é um bostinha mesmo.

Luiz saiu correndo.

Júlio tinha mais de cem quadrinhos de filmes. Trocava com o Vitor, ajudante do Cezarino no cinema. Quando o filme arrebentava ( o que acontecia em quase todas as sessões), sempre sobrava um pedaço de filme após ser emendado. A ordem era que tais pedaços fossem destruídos, mas Vitor escamoteava e faziam com eles um bom comércio. Com Júlio, por exemplo, trocava pelos caderninhos animados.

Júlio – engenhoso como ele só — fez um cineminha no porão de sua casa. A casa era antiga, construção sólida, e o porão era alto, dava para brincar de muitas coisas. Com entrada pelos lados, que dava para o quintal da casa, era separado da rua por aberturas circulares gradeadas. As aberturas eram pequenas, e o porão era escuro e fresco.

Com dois pequenos espelhos mais uma lâmpada queimada cheia d’água, Júlio levava a luz do sol da tarde, refletida e intensificada para dentro do porão sombreado . Tanto a lâmpada quanto os espelhinhos ficavam na beirada externa da abertura circular que dava para a rua. Funcionavam como um projetor, dirigindo um potente raio de luz para dentro do porão. Numa das paredes de pedra, dentro do porão, fixou um pedaço de pano branco onde fazia incidir a luz ampliada. E passando os quadrinhos de celulóide na frente do feixe de luz, projetava as figuras na “tela”.

— Hoje tem cineminha. Às três horas. Vamos lá, turma?

— Só se for de graça, não tenho nada pra pagar a entrada.

Júlio cobrava a entrada. Não tinha preço fixo, que dinheiro naquela época era raridade. Fazia uma troca de diversas coisas, tal como Valtinho negociava seus estilingues. Valiam as revistas velhas, raias e papagaios, brinquedos. Júlio é quem atribuía o valor aos trastes oferecidos em troca da entrada. Com isso, tinha um verdadeiro “tesouro” de bugigangas: petecas, caixa de lápis de cor, cadernos escolares sem uso, livros velhos, gibis, um terço (na certa pertencente à mãe de algum dos freqüentadores). Até uma coleção de dez moedas velhas (“muito antigas”) serviu para pagar o ingresso.

Naquela tarde, Luiz pediu ao irmão:

— Pede um estilingue do Valtinho, pra ele poder entrar.

Júlio concordou e quando Valtinho se apresentou para entrar:

— Me paga com um estilingue . — falou Júlio.

— Tá doido ? É muito, pra esse cineminha bobo.

— Então não pode entrar.

Valtinho não entrou. Ficou meio amuado e se foi.

A curriola inteira estava ali no porão. Júlio acertou os espelhos e a lâmpada com água, ajustando o foco, e começou a passar os quadrinhos de celulóide na frente do foco luminoso. De vez em quando interrompia a projeção para ajustar o ângulo da luz, que se deslocava conforme o sol se movimentava.

Quase todos os quadrinhos já haviam sido projetados. Júlio foi fazer o último ajuste quando CRASH ! Uma pedrinha certeira atingiu e quebrou a lâmpada, espirrando água nas mãos de Júlio.

— Filho duma puta ! — Júlio, assustado, logo deu o nome certo ao atirador.

A sessão terminou assim. E o cineminha também. Ninguém falou nada, mas todos sabiam e Luiz tinha certeza: aquilo era vingança de Valtinho e seu estilingue.

ANTONIO ROQUE GOBBO-ARGOS-BELO HORIZONTE-22 DE JULHO DE 2000

Conto # 38 da Série Milistórias

Publicado em “A Babel da Torre”,

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 07/03/2014
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