A morte de dona Dolores

A poeira subia à medida em que o trem se aproximava, tornando-se continuamente espessa, nebulosa e, após alguns instantes, esvaía-se pelos ares. O sol brilhava já bastante fraco, caindo triste no horizonte com seus últimos raios cor laranja, atingindo diretamente os olhos cansados de dona Dolores. A pouca luz que ainda restava do dia deixava evidente a quantidade de rugas, marcas e manchas no rosto da senhora, de modo que nenhum transeunte sequer deixava de olhá-la, pelo menos por alguns segundos, com certa curiosidade e, principalmente, pena. Aliás, que pena daquelas pupilas caídas sobre os olhos negros, daqueles óculos gastos de lentes opacas, daquela pele maltratada pelo tempo e queimada brutalmente de sol a sol, daqueles trajes velhos e gastos, daquelas sandálias desbotadas e descascadas, daquela boca de cujos lábios só saíam suspiros e rezas incessantes sob a luz de velas - todas as noites -, clamando pela piedade dos céus... Que pena daquele ser humano humildemente sentado no banco, com uma pesada sacola de frutas nas mãos, esperando pelo trem.

Depois que a poeira finalmente desapareceu, os faróis do trem tornaram-se mais próximos e visíveis, fazendo com que dona Dolores se levantasse, quase sem forças e bastante curvada, e fosse em direção à porta aberta do vagão. Colocou o pé direito com certa dificuldade no primeiro degrau - tropeçou ao tentar colocar o esquerdo no segundo e arranhou levemente a pele fina da perna -, porém logo foi amparada por uma mão jovem que se estendeu e segurou-lhe um dos braços.

- A senhora está bem?

Alguns segundos de silêncio - olhares entrecruzaram-se.

- Sim.

O moço tomou a passagem de dona Dolores nas mãos e apressou-se em acompanhá-la até seu assento. A senhora tentou esboçar um sorriso de gratidão, acenando vagarosamente com a cabeça, porém sua tristeza transbordava-lhe por cada poro, de forma que qualquer intenção de parecer minimamente feliz tornava-se falha.

Assim que o jovem partiu para seu lugar no vagão, Dolores acomodou a sacola no colo - joelhos juntos - e debruçou o cotovelo esquerdo pelo estreito e duro apoio do janela suja do trem.

As luzes da cidadezinha já começavam a acender e o movimento nas ruas tornava-se cada vez mais escasso. Menos pessoas, menos bicicletas, menos cavalos, menos carros... Vazia, porém iluminada. As árvores de grande porte na frente de cada casa formavam vastas áreas de sombra e escuridão sobre o chão. Os passarinhos se recolhiam em seus ninhos e davam seus últimos assobios. Uma leve brisa noturna - gélida - começou a movimentar as folhas e a balançar os fios dos postes.

O trem iniciou uma curva bastante sinuosa e, de repente, Dolores e os demais passageiros sentiram um solavanco bastante forte - o qual os fez pular de seus assentos - e, logo em seguida, um trepidamento frenético do vagão.

Dolores engoliu em seco e seus olhos, pela primeira vez em anos, abriram com toda a força, estalados. Seus óculos escaparam-lhe do rosto e caíram no chão, estilhaçando as lentes. As mãos ficaram frias - agarradas à sacola de frutas -, seus pés juntaram-se com medo e a boca estremeceu. Sua vista era pouca, porém via luzes rápidas passando do outro lado da janela, via as coisas girando e a poeira que o trem levantava - outra vez. Ouviu, com bastante nitidez e dor, as rodas enferrujadas do trem rasparem com violência sobre os cascalhos da estrada enquanto as pessoas choravam, rangiam os dentes, gritavam e diziam que o vagão havia descarrilhado na curva e que, agora, eles estavam em alta velocidade, em direção ao abismo do lado esquerdo da estrada de ferro.

"Morrerei agora? É isso? O trem irá cair dezenas de metros até chegarmos no chão? Ora... Mas o que temer?".

O que dona Dolores tinha de temer, afinal? Morrera tantas vezes na vida... Sua morte se iniciou no dia em que apanhou pela primeira vez, de seu pai, quando criança. Depois morreu quando viu sua mãe sucumbir a uma bebedeira - era alcoólatra. Morreu quando casou com um homem que não amava. Morreu quando perdeu o primeiro filho num acidente de carro. Morreu ainda mais quando o marido a deixou para ficar com outra. Passou a morrer todos os dias, posteriormente, quando teve de começar a se prostituir para ter comida sobre a mesa. Morrer era tudo o que havia feito durante a vida inteira. O que tinha de temer agora?

O trem atingiu o fim da estrada, girou uma vez e caiu pesadamente no abismo. Sua sacola arrebentou com o impacto e, entre as frutas rodopiando no ar, dona Dolores morreu - dentre tantas outras mortes -, porém pela última vez.

Dona Iaiá
Enviado por Dona Iaiá em 08/03/2014
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