CAIXA DE MARAVILHAS

— São catorze horas em São Roque da Serra. A Partir deste instante a sua Rádio Difusora Serrana tem o prazer apresentar CAIXA DE MARAVILHAS !

Com voz entusiasmada , José Milton anunciava aos ouvintes da emissora local o início de mais um programa de auditório. Todos os domingos o programa chamava a atenção de ouvintes e participantes do animado programa. Auditório lotado. As pessoas se antecipavam ao horário para conseguir um assento . Muita gente de pé, principalmente a rapaziada, as moças, os garotos. Sobre um tablado elevado trinta ou quarenta centímetros à maneira de palco, José Milton e Zezé Guimarães conduzia o programa pelas próximas duas horas.

O dinâmico diretor da emissora aproveitara o dia da inauguração do novo prédio para lançar o programa no ar. Não fora fácil conseguir o primeiro patrocinador. O programa foi idealizado para dar prêmios aos assistentes, a produção não era barata. Jamil Elias foi o primeiro comerciante que se dispôs a bancar o programa. Proprietário da Loja das Novidades, com estoque muito fino de tecidos, simpático para com as freguesas que freqüentavam seu estabelecimento, levou sua simpatia para a Radio Difusora. Tinha uma poltrona também sobre o tablado, de onde assistia ao programa e por vezes fazia intervenções : brincava com os participantes, aumentava o valor dos prêmios.

Aquarela do Brasil era o prefixo musical do programa. No auditório a ansiedade tomava conta de todos. Nas residências que tinham aparelho de rádio, o som era aumentado.

— Senhoras e senhores, boa tarde ! Boa tarde, auditório !

Meia dúzia de assistentes respondia fracamente.

— Não ouvi direito. Boa tarde, gente !

Agora, um coro mais forte respondia . A animação começava. Caixa de Maravilhas era um programa simples, basicamente de perguntas e respostas. Bem estruturado, entremeava as séries de perguntas com cantores regionais, duplas caipiras, contadores de causos e piadas. O pianista Marquito Gusmão executava no piano duas peças semi-clássicas.

Toninho assistia ao programa desde o primeiro dia. E nunca perdeu um. Esperto, leitor voraz e de boa memória, destacou-se desde o início, respondendo às perguntas e obtendo prêmios.

— E vamos iniciar a primeira etapa de perguntas. — Zezé Guimarães era o proprietário da emissora. Apaixonado pelo rádio. Boa dicção , às vezes trocava o L pelo R, principalmente nas transmissões dos jogos de futebol.

Começava com uma bateria de perguntas de conhecimentos gerais, significados de palavras estranhas, esportes, cultura, citações para serem determinados os respectivos autores, enfim, uma miscelânea.

— Quem disse "Um país se faz com homens e livros"?

Algumas mãos se levantavam e respondia quem fosse mais rápido. Zezé e Milton ficavam atentos para ver quem se manifestava primeiro.

— Foi Olavo Bilac ! — respondia o primeiro.

— Errado! O seguinte, quem é? Quem responde agora?

Era o Toninho, que responde com certeza:

— Foi Monteiro Lobato !

— Certo! Absoluuuuuuutamente certo ! Vem para a frente o garoto que respondeu Monteiro Lobato.

Palmas para o menino, que se dirigia para a primeira fileira de cadeiras. Na primeira meia hora eram selecionados dez acertadores das respostas às perguntas feitas. Sentavam-se na primeira fileira de poltronas, e na segunda etapa somente eles seriam sabatinados com perguntas mais difíceis ou enigmas, problemas, coisas assim.

A seleção dos dez era animada e descontraída. Cada assistente era levado para cima do palco, fazia-se uma mini-entrevista, alguma brincadeira apropriada.

— E aí vem o jovem leitor de Monteiro Lobato. Como se chama, amiguinho?

— Antonio Ramos Gomes Filho.

— Muito bem, Antonio. Você gosta de Monteiro Lobato?

— Gosto demais.

— Já leu muitos livros escritos por ele?

— Só dois, mas quero ler todos.

— E você estuda? Onde estuda?

— Estou no Ginásio Municipal. Segunda série.

— E seus pais estão ouvindo o programa Caixa de Maravilhas?

— Estão sim. Estão grudados no rádio lá em casa.

— Muito bem, seu Antonio Ramos Gomes Filho. Puxa, que nome comprido! Vamos chamá-lo aqui de Toninho Ramos, tá bem? Vocês sabem, não temos tempo a perder. E a nossa próxima pergunta....

Toninho já tinha assegurado um prêmio de dez cruzeiros por participar da seleção dos dez para a segunda etapa do programa.

— E agora, senhoras e senhores, ouvintes da Difusora Serrana, completada a seleção dos dez bambas, vamos apresentar a dupla "Zé Ramirez e Cafunguinha". Palmas para eles !

Entrava a dupla de cantores caipiras. Roupas de jeca, chapéus de palha, cigarrinho de fumo picado ajeitado na orelha, as violas já afinadas. Não perdiam tempo, atacavam logo a música.

" Domingo de tardezinha, eu tava mesmo à-toa,

convidei meu cumpanheiro pra i pescá na lagoa...

Ai, ai, fumo pescá de canoa.... "

Só depois que terminavam o número musical é que davam um dedo de prosa entre eles e com o pessoal do auditório.

— Êh, cumpadre, cumo é que vai a sua roça de arroiz ?

— Uai, cumpadre, ela num vai pra lugar nenhum não. Tá lá no mêmo lugá .

Saíam os caipiras, entrava Mario Manari para contar piadas. Começou contando piadas inocentes, mais tarde descobriu seu dom de ventríloquo. Construiu um boneco, o Marico, e tornou-se um artista.

— E hoje temos uma apresentação especial. Temos o prazer de apresentar uma revelação musical: Otavinho e seu serrote musical. — José Milton nem bem acabara de falar e subia no palco outro "artista".

Otavinho trazia seu instrumento musical que era, na verdade, um dos serrotes do pai. Prendendo o cabo do serrote com os pés sobre uma lata vazia, fazia a lâmina vibrar com as duas mão, passava um arco de violino sobre a borda lisa, produzindo tons graves e executando algumas músicas conhecidas, bem simples. Arrancava aplausos pela originalidade do instrumento bem como pela sua performance que era um tanto quanto diferente, acrobática.

Seguia-se a segunda parte do programa. Agora, as perguntas, os testes de inteligência e de conhecimento, enigmas, e afins eram feitos apenas para os dez sabe-tudo, assentados na frente do auditório. A dificuldade aumentava. Cada resposta certa contava um ponto. Quem fizesse mais pontos ao final da série de vinte perguntas era o vencedor final, levava o prêmio de 50 cruzeiros.

— Papai, hoje ganhei 60 cruzeiros na "Caixa de Maravilhas" ! Acertei nas respostas de oito perguntas. Todas bem difíceis.

Seu Astolfo fingia surpresa. Tinha ouvido o programa pelo rádio. Não escondia sua alegria, abraçava o filho. Também no ginásio a fama de Toninho chegou rapidamente. Os professores gostavam dos alunos que respondiam no programa.

Numa série de programas o José Milton começou a fazer perguntas sobre o significado de palavras formadas com o sufixo fobia. Toninho muito espertamente foi ao dicionário e elaborou uma lista de mais de 30 palavras do gênero e decorou-as. Nos programas seguintes acertava todas as perguntas que terminavam em fobia. Ficou ainda mais famoso por essa especialidade.

— Que significa agorafobia?

Toninho levantava a mão automaticamente, respondia depressa, atropelando as palavras:

—É medo de andar em lugar muito aberto.

Estabeleceu-se um tipo de desafio, José Milton de um lado, com as perguntas e Toninho ágíl na respostas de outro lado. Até que um dia atingiu o máximo.

— O que significa triscaidecafobia?

Silêncio no auditório. Todos os olhares - inclusive os de Zezé Guimarães e José Miltom - se dirigiram para Toninho, lá no fundo, ao lado de uma das grandes portas do auditório. Toninho vacilou. Não saberia a resposta? Por um longo minuto, ninguém falou nada.

— Então, ninguém sabe o que é tris-cai-de-ca-fo-bia ? Toninho, esta é para você ! - José Milton desafiava descaradamente o garoto. Então, ele se lembrou, foi só um lapso. Levantou a mão.

— Você tem certeza de que sabe a resposta certa? - O animador tentava intimidar o adversário.

— Sei, sim. É o medo do número treze !

— Tem certeza? Olha que você pode estar errado.

— Tenho certeza, sim. É isso mesmo que falei. Medo do treze.

José Milton tentou manter o suspense, mas foi logo tropelado por Zezé Guimarães.

— Absoluuuuuuuuutamente certo !

Palmas, gritos e assobios. Toninho já tinha seus admiradores, não só colegas como também diversos adultos, que o incentivavam e o aplaudiam. Inclusive Jamil Elias, o "dono" do programa, que naquele dia aumentou o prêmio final para cem cruzeiros - o qual foi, finalmente, ganho por Toninho.

Alguns colegas do ginásio, despeitados, tentaram diminuir a fama de Toninho.

— Tem marmelada. Eles falam a resposta pro Toninho. — Foi o comentário de Nelson Lareda, um do mais velhos alunos do ginásio, repetente de todas as séries.

Toninho nem precisou falar nada. Na sua defesa saiu o Marcio Guimarães, justamente o filho do diretor da emissora:

— Tá pensando o quê, Nelson. Cê acha que meu pai tá fazendo tramoia?

Nelson calou-se, intimidado mais pelo porte de Marcio do que pelas palavras de desafio. Marcio era, na verdade, o estudante mais desenvolvido, mais alto, por isso mesmo apelidado de Espanador da Lua.

Enquanto durou o progama, nos anos de 1945 até 1950, Toninho foi figura de destaque. Teve seus dias de glória e de fama. De garoto tímido tornou-se desembaraçado, ficou mais esperto na prontidão das respostas. Usava o dinheiro dos prêmios para comprar gibis e ir às sessões de sábado à noite do Cine Recreio.

Glória, fama, dinheiro. Que mais poderia almejar? No auge da popularidade do programa e também de Toninho a Rádio Difusora Serrana foi vendida para a Paróquia de São Roque da Serra. "Caixa de Maravilhas" foi substituído por um programa de doutrinação católica chamado "Catecismo Dominical".

Toninho foi então atacado de profunda catequismofobia.

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ARGOS = ANTONIO ROQUE GOBBO = Belo Horizonte 16 de Agosto de 2000

Conto # 42 da série Milistórias – publicado em « A Babel da Torre »

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Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 08/03/2014
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