PELOS CAMINHOS DA VIDA

O grupo estava sempre animado. Reunidas ao redor do rádio, conversavam rapidamente aproveitando os dois ou três minutos de intervalo da novela.

— Ai, Jesus ! Este sofrimento não acaba nunca. Não agüento esperar o fim do capítulo. — Dona Carmélia não conseguia esconder a sofreguidão e ansiedade por um drama tão alheio ao seu cotidiano. E talvez por isso mesmo se preocupava tanto e ficava tão aflita.

— Coitado do Dr. Ávila ! Será que nunca mais vai encontrar o filho? — Dona Maria Duarte perguntava a si e às demais companheiras, mais interessada em espichar a conversa do que preocupada com o desenrolar do drama radiofônico.

A reunião acontecia diariamente na casa de Dona Carmélia. A novela da Rádio Nacional que ia ao ar à uma hora da tarde era o motivo daquele convívio das vizinhas.

— Vou pôr a água pra esquentar. — Dona Carmélia preocupava-se demais com o conforto das amigas. Depois do capítulo da novela servia o cafezinho para todas.

Na cozinha, ajeitou uns gravetos em cima do tição no grande fogão de lenha. Logo as chamas cresceram, colocou a chaleira sobre a chapa de metal. Vou servir a rabanada que fiz antes do almoço, pensou . Da porta da cozinha observou o marido na sua oficina de marceneiro, aplainando uma pesada tábua, o coitado está apertado de serviço. No fundo do quintal estão os dois meninos brincando na terra, entre os canteiros de verduras.

— Zequinha ! Luizinho! Venham pra dentro, tá na hora de estudar.

Os garotos fingem que não ouvem. Da sala onde está o rádio vêm os sons da Valsa das Flores, prefixo da novela. Vai começar a segunda parte do capítulo e dona Carmélia não quer perder nada, sequer um diálogo ou um suspiro da doce e sofrida Madeleine, cujo filho desapareceu misteriosamente.

— Acho esta história tão triste! Os personagens sofrem tanto! - Comentários de Dona Júlia, que se condoía por pouco ou por nada.

A "história tão triste" era a novela Pelos Caminhos da Vida, irradiada pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro, nos anos de 1941 e 1942. As vozes de Celso Guimarães, Ísis de Oliveira, Renato Murce, Floriano Faissal, entre outros, levavam aos ouvintes, com fidelidade, as peripécias dos personagens, ficando a cargo da imaginação de cada um os detalhes e o back-ground da radionovela.

Enquanto ouvem os lances e imaginam as situações dos personagem, as mulheres guardam silêncio, concentram-se nos seus trabalhos . Cada qual tem um quefazer para não ficar de mãos abanando, na ociosidade, enquanto ouvem. Dona Carmélia, dona Júlia do Zé Ferreira e Nair são hábeis tricoteiras, manejam as agulhas de tricô rápida e eficientemente, a cada três ou quatro capítulos da novela produzem toalhinhas, bicos de toalhas, centros de mesa. As irmãs Albertina e Conceição, filhas do Adalberto sapateiro cortam pequenas rodelas de couro, com as quais fazem pequenos tapetes. Zizi, filha de dona Maria Duarte, recorta pedaços de panos coloridos, em forma de folhas e pétalas de flores. Habilmente, vai colando as folhas e pétalas em arames e completando lindas hastes de rosas, cravos e margaridas. Apenas Ramona não faz nada: meio debilóide, os grandes olhos observam as demais nas suas atividades. A boca entreaberta num sorriso permanente. De vez em quando baba.

Luizinho chega do quintal, as mãos sujas, descalço, a tempo de ouvir Nair:

— Pronto, acabei esta toalhinha! — Estende o trabalho sobre a mesa, uma toalhinha amarela, redonda. Espicha com as mãos, puxando os bicos de tricô. Ninguém presta atenção, todas atentas ao desenrolar da novela do rádio.

Luizinho aproxima-se, meio sorrateiro. Gosta de Nair, é muito bonita. Magra e alta, os cabelos ruivos despencam-se sobre os ombros em cachos brilhantes. Usa umas roupas floridas, seus vestidos são curtos, quase nos joelhos. Quem dera que fosse minha namorada, pensa. Mas já tem o Sílvio, ela nem olha pra mim . . .

— Vai lavar as mãos e chama seu irmão. Daqui a pouco tem café. — Dona Carmélia não perde seus meninos de vista, controla os movimentos de ambos, fiscaliza dia e noite.

Mais quinze minutos de choros, lamentações, desesperos radiofônicos e o capítulo chega ao fim. A trama não evoluiu muito e o suspense continua.

— E assim chegamos ao final de mais um capítulo da novela Pelos Caminhos da Vida. Assistam amanhã a um novo capítulo, sempre sob o patrocínio do Sabonete Palmolive e do Creme Dental Colgate. — A locutora Helena Maria encerra o capítulo, o rádio é desligado.

Dona Carmélia, novamente na cozinha, passa o café no coador e traz o bule com a bandeja de xícaras.

— Zizi, por favor, pega na cozinha o prato com rabanada.

A garota vai e volta num átimo. Sentadas longe da mesa, cada qual é servida por Dona Carmélia de café e de engorduradas fatias de rabanada.

— E seu Renato, não toma café? — Albertina preocupa-se com o marido de dona Carmélia.

— Depois levo pra ele. Não gosta de sair da oficina só pra tomar café. Tem muito trabalho, não quer perder tempo. Tá apertado com a entrega da mobília de sala da dona Marocas do grupo escolar, que está atrasada um tempão.

Na verdade, não é bem assim. Seu Renato até que gosta de tomar seu café com todo o vagar, na cozinha, deliciando-se com os quitutes da patroa. Adora rabanadas, bolinhos fritos, os quebra-quebras e as broinhas de amendoim. E uma boa caneca de café com leite.

Do que não gosta mesmo é das reuniões das vizinhas para ouvir novelas na sua casa. Um bando de comadres tagarelas, pensa. Todas as tardes a mesma coisa. Desde que comprou o rádio, já faz uns três anos, elas estão nessa de ouvir a novela da uma hora. Parece que não tem fim.

O rádio fora comprado quando ele recebeu um pagamento de serviço feito para o Coronel Melquíades. Já tinha dado como perdido, tanto tempo demorou o coronel em lhe pagar. Aproveitou e comprou o rádio, de segunda mão, do Manoel Gomes. Usado mas funcionando e bem conservado. A caixa de madeira polida brilhava com o uso do Óleo de Peroba. Instalou o aparelho na sala de jantar, numa prateleira alta, longe do alcance dos garotos.

Era tempo de guerra, as notícias eram dadas em duas, três e às vezes em quatro irradiações ao dia, no Repórter Esso e no Jornal da Tupi. Disso seu Renato gostava. Mas as novelas... que perda de tempo`! E de energia também, era um gasto extra de eletricidade. Ainda mais agora que a Empresa Força e Luz havia instalado os medidores de energia. Seria bom se essas tagarelas ajudassem a pagar a conta.

— Bem, barriga cheia, pé n'areia ! Vamos, Zizi. — Invariavelmente dona Maria Duarte, cuja casa na esquina se destacava entre todas do quarteirão, pelo grande alpendre e três pés de ciprestes chorões, era quem se levantava primeiro e punha fim na reunião.

Despedidas, agradecimentos, etc. Dona Carmélia volta do portão , encontra Luizinho na sala comendo uma fatia de rabanada.

— Luizinho, me ajuda aqui, leva essas coisas pra cozinha.

Da porta da cozinha chama o marido e o filho, ambos na oficina:

— Renato ! Zequinha ! Venham tomar café !

A família se reúne ao redor da mesa da cozinha. Seu Renato tem algumas pequenas aparas de madeira nos cabelos, que dona Carmélia tira com carinho. Os garotos estão com as roupas empoeiradas, mas as mãos limpas, recém-lavadas, cheiram a sabonete Eucalol.

— Agora de tarde vocês vão me ajudar na oficina. Tem muito serviço que podem fazer. — Seu Renato determina aos dois garotos.

— Fazer o quê? — Luizinho, o mais velho, bem desenvolvido para seus 10 anos, usa um tom um pouco insolente.

— Vão lixar as portas do guarda-roupa.

Após o café, lá vão os três para a marcenaria.

— Ai, Jesus! Me toca agora lavar a roupa. —Dona Carmélia prosaicamente ajeita o avental de tecido grosso, passa a alça pelo pescoço e amarra as tiras atrás, fazendo um laço nas costas. Vai para o tanque no quintal.

ARGOS

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE

AGOSTO DE 2000

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 09/03/2014
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