RODA DE HISTÓRIAS

= RODA DE HISTÓRIAS =

Quando apareceu com a novidade, nos intervalos das aulas, Lorena soube cativar as colegas mais antigas para o passatempo que ficou sendo conhecido, durante muitos anos, no Colégio N. Sra. Das Graças, como Roda de Histórias . Não foi apenas de uma maneira gostosa que a alunas tiveram de matar o tempo nos recreios. Também balançou a rígida estrutura de separação das meninas e moças, estabelecida há muitos anos e jamais contestada.

As freiras do colégio impunham uma disciplina rigorosa, segregando as alunas “internas” das “externas” , as quais eram também divididas em “menores” e “maiores”. As “menores” eram as do curso de admissão e da 1a série ginasial, as “maiores” freqüentavam as demais séries: da 2a á 4a série.

Difícil dizer qual categoria sofria mais. As internas, coitadas, quase não conversavam com as externas. Durante as aulas, nem pensar; nos recreios, iam para o pátio interno, exclusivo para uso delas; quando as aulas terminavam, iam imediatamente para o refeitório. Mas as “menores” também padeciam: deviam permanecer no pátio das menores, antes e durante os intervalos das aulas. Quando eram promovidas para a 2a série, começavam a freqüentar o pátio das maiores. Eram, então, segregadas durante muito tempo. Só no segundo semestre conseguiam ser aceitas pelas veteranas em suas conversas, rodas e grupos.

Lorena subverteu, sem querer, essa ordem medieval. Ao chegar ao pátio das maiores, sua irmã Luciana ajudou-a no entrosamento com as colegas. A vivacidade e simpatia de Lorena, mais do que a proteção da irmã, foram as causas de sua popularidade. Na primeira semana de convívio, começou a jogar a “roda de histórias” com suas colegas de classe. Eram apenas cinco, e estavam juntas em todos os intervalos.

— É simples: a gente faz um círculo numa folha de papel. O círculo é dividido em partes numeradas, uma parte para cada jogador. Cada jogador deve saber contar histórias e não há limite para o número de participantes. — Lorena não se cansava de explicar, como se fosse ela a criadora da brincadeira. — Cada jogador recebe um pedacinho de papel onde escreve o seu nome e a história que vai contar. Amassa o papel numa bolinha. Jogamos as bolinhas de papel sobre a “roda” desenhada. Como as bolinhas de papel caem nos setores numerados, dentro do círculo, fica assim determinada a ordem em que cada contador vai contar sua história.

— E se der empate, duas bolinhas com a mesma história?

— Se dois jogadores escreverem o nome de uma mesma história, os dois têm de fazer novas bolinhas, com nomes de outras histórias.

— Vale repetir histórias?

— Não vale. Quem repetir história perde a vez.

No ano anterior, Lorena já jogara com as colegas da primeira série. Mas o passatempo só ficou famoso quando foi introduzido no pátio das “maiores”. A mania pegou. No primeiro semestre, foi uma febre geral no colégio. Às singelas histórias infantis seguiram-se as narrativas de novelas e contos que as adolescentes liam, muitas vezes, às escondidas. As alunas das classes mais adiantadas inventavam histórias de amor e romances impossíveis.

As colegas internas também foram contaminadas pelo jogo, já que ninguém consegue separar totalmente as pessoas. Como elas usufruíam de mais tempo de recreio, durante a tarde e à noite, jogavam mais.

As freiras ficaram intrigadas com tantos grupinhos reunidos por todo o colégio. A Madre Superiora quis saber do que se tratava.

— Irmã Clarice, que está acontecendo?

— É um passatempo novo, um joguinho, inventado pelas alunas.

— Jogo?

— É, tem um sorteio, coisa sem importância.

— Quero saber do que se trata.

— Sim , Reverenda, vou descobrir os detalhes da brincadeira.

Irmã Clarice , professora de Português e Latim, era simpática entre as alunas, conversava e brincava com todas as meninas. Não demorou em chegar à autora da idéia: Lorena.

Rosamaria contou a história real, acontecida alguns anos atrás, nos arredores da cidade.

“Roque e Raquel estavam noivos, de casamento marcado para o fim do ano, quando foram convidados para o pic-nic no feriado do Dia da Independência. Ele era gerente da Casa Americana, “um partidão” para as moças da época. Tinha participado ativamente da revolução de ’32, era um herói. Ela lecionava do curso primário. Alta e magra, elegante, educada, paixão de muito aluno de sua classe.

“Haviam escolhido um local aprazível para passarem o dia : as margens do rio Liso, onde uma cascatinha formava o Tirabufo, poço de má fama. O grupo era de 13 pessoas, a maioria foi a pé, já que o local distava da cidade poucos quilômetros. Rafael e Raquel foram no carro do rapaz, um Chevrolet do ano de 1932, conhecido como “guarda-louça”.

“Chegaram cedo ao local combinado para o pic-nic. A areia fina estendia-se fresca por mais de duzentos metros ao longo das margens da mansa corrente d’água. Acima da praia, a cascata ressoava: o rio despencava de uma altura de 10 metros, sobre pedras, e formava o poço do Tirabufo. O nome já o está denunciando: é um assassino. Fundo, tem um redemoinho forte, suga para seu interior os incautos. Muitos animais e dois banhistas tinham sido tragados pelo torvelinho. Todavia, banhar-se na cachoeira, naquela manhã quente, antes do lanche, era quase uma obrigação.

“Roque e Raquel entraram, decididos, mãos dadas, sob a cascata. Lá estavam alguns do grupo, espadanando água uns nos outros. As pedras escorregadias não assustavam os intimoratos banhistas. Ninguém sabia nadar, mas todos estavam atentos para o perigoso poço, alguns metros abaixo.

“Riam, gritam, brincam como crianças. Passam de uma margem a outra. Resvalando-se numa pedra solta, Raquel perde o equilíbrio, escorrega, tenta agarrar-se ao noivo, que está a seu lado, mas cai e desliza rumo ao poço. Roque tenta segurá-la, suas mãos se fecham sobre a cabeleira comprida da moça, mas apenas uma mecha de fios loiros ficam em suas mãos. Não espera um instante, nem pensa no que está fazendo: pula, conseguindo chegar juntamente com a noiva ao centro do poço. Inútil ato de heroísmo e de amor. Não sabe nadar, tal como a jovem que se debate no burburinho das águas. Os companheiros sobre as pedras, aterrorizados, nada podem fazer, apenas observar: os dois se abraçam e assim, num enlace fatal, são tragados pelo vórtice rápido e mortal. “

Irmã Clarice emociona-se ao ouvir a história e não nega um elogio:

— Que lindo, Rosamaria ! Parece história de verdade.

— E é mesmo, irmã. Aconteceu aqui perto, no Rio Liso, na serra de Ipoméia.

Com habilidade, a irmã tinha conseguido participar de uma “jogada” do grupo de Lorena. Precisava descobrir a origem do passatempo tão inocente, mas que trazia no seu sorteio o germe do jogo, prática impensável num colégio religioso. Jamais!

O que descobriu, todavia, era uma extraordinária motivação para contar histórias. O sorteio da ordem de participação nada representava de pernicioso. Era apenas uma maneira lúdica de determinar a ordem em que as contadoras se apresentariam.

— Como você inventou esse jogo? Perguntou à Lorena, com ar casual, assim como quem não quer nada.

— Não fui eu quem o inventou, não senhora. Minha tia Priscila faz roda de histórias quando estamos reunidos. Sabe, somos muitos primos e primas, e a tia é danada, sabe todas as histórias de fadas, das mil e uma noites, e muitas, muitas outras. E quer que todo mundo, quer dizer, os sobrinhos, contem suas historias, seus causos.

— Então a Luciana também já sabia deste jogo?

— Sabia, sim. Há muito tempo. Mas ela é meio calada, não é mesmo?

Irmã Clarice sorriu intimamente com a desenvoltura da miúda.

— Posso ouvir mais histórias?

— Quando a senhora quiser.

Na próxima vez em que Irmã Clarice estava presente, as alunas esmeraram-se no nível e capricharam na dramatização das histórias. Terezinha, na sua vez, contou a história que chamou “A missa do primo Fenício”. Maria Cecília narrou uma história romântica sobre uma “Gargantilha de Prata”. Berenice, veterana, sabia de coisas do arco-da-velha, narrou uma melosa história de amor.

Cumprindo sua missão, Irmã Clarice informou à Madre Superiora, com fidelidade, do que se tratava a “roda de histórias”. Não houve condenação , tampouco houve aquiescência. Não foi permitido à Irmã aplicar a roda de histórias em sala de aula, como pretendia.

Se não pôde levar para as aulas de literatura as histórias contadas pelas alunas, incentivou-as a escrevê-las. Aconteceu então, nos anos de ’49, ’50 e ’51 uma verdadeira explosão de escritoras de contos, em quase todas as séries do colégio.

À formatura da turma de Lorena seguiu-se a transferência de Irmã Clarice para outro colégio da congregação. A “roda de histórias” ficou sendo apenas mais uma história entre tantas outras que Lorena, muitos anos depois, contaria para seus alunos do curso primário.

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ANTONIO ROQUE GOBBO (ARGOS)

Belo Horizonte, 19 de novembro de 2000

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Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 14/03/2014
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