ANO QUE VEM TEM MAIS

Era sempre assim, a paz doméstica era conturbada toda vez que Dorinha estava presente.Clovis já não suportava mais aquela situação. O poder e ascendência que Dorinha exercia sobre a irmã eram tão grandes que Dalila se apagava completamente na presença da irmã.

— Querido, a Dorinha quer almoçar fora. Hoje é o último dia que ela passa conosco. Quer comemorar.

— Tá bom. Ela escolhe onde deseja ir. — Clovis já sabia que sua idéia seria refutada de imediato, tanto pela cunhada como por Dalila.

— Vamos almoçar num restaurante chinês. Nunca comi comida chinesa. Dizem que é boa, quero experimentar.

Armado da maior paciência, Clovis levou-as ao Muralha Chinesa , o melhor restaurante chinês da cidade. A comida é igual a qualquer restaurante chinês, no mundo inteiro. Clovis sabia de experiência própria. Em suas viagens, sempre que queria comer algo conhecido, sem perigo de errar ao pedir a comida, ia a um restaurante chinês. É fácil, só pedir pelos números. Não obstante o cardápio ser incompreensível para quem não sabe chinês, os números sempre correspondem aos mesmos pratos. O serviço do Muralha Chinesa , contudo, é excelente, a situação do hotel é num local aprazível e fica num alto casarão com varandas frescas.

As observações e comentários da cunhada eram constantes, ela dava palpite em tudo.

— Clovis, você é confiado demais. Imagine, deixar o carro na mão desse manobrista. Ele pode arranhar seu carro.

— Ora, Dorinha, ele é especialista. Não tem perigo, a gente pode confiar. E a responsabilidade é do restaurante, o carro fica estacionado no pátio interno.

Entram no restaurante. Dorinha se antecipa ao mâitre, entra pelo salão de maneira inopinada, apontando logo para uma mesa.

— Ali, quero sentar naquela mesa.

— Perdão. Posso sugerir esta aqui? Aquela está reservada. — O maitre fala baixo, a fim de não chamar mais a atenção dos outros clientes.

— Esta mesa está boa. Ficamos aqui mesmo. — Clovis concorda. Dorinha percebe a mancada, se dirige à mesa em que Clovis e Dalila já estão sentadas. Insiste na sua escolha.

— Aquela lá é melhor, mais próxima da janela. Com este calor aqui, é melhor ficar perto da janela.

— Dorinha, aqui dentro temos ar condicionado. — Finalmente Dalila saiu do seu mutismo.

O garçom distribui os cardápios. Clovis pede logo uma cerveja.

— Não sei se peço uma água ou uma soda. Que você acha, Dorinha?

— Estou mais para uma água mineral gasosa, BEM GASOSA, viu, seu garçom?

A cafonice de Dorinha é imensurável, pensa Clovis.

— Também quero uma assim igual à da Dorinha.

Abrem o cardápio, começam as escolhas.

— Queria comer uma salada bem boa. Assim com muita alface, tomates, palmito.

— Dorinha, aqui não tem esse tipo de salada, não. Tem que pedir o que está no cardápio.

— Não entendo nada desses garranchos chineses. E macarrão? Tem macarrão?

O garçom, que chega com as bebidas, explica.

— Sim, temos um prato de macarrão bem fininho com legumes e carnes.

— Quero esse — Dorinha escolhe.

Quando a comida é servida, Dorinha não gosta do que pediu.

— Tem muito legume pra pouco macarrão.

Clovis já não liga mais para o que a cunhada fala. Mas Dalila quer se mostrar solidária com a irmã.

— A gente devia ter ido a um restaurante de massas.

— Deus que me livre! Aquelas comidas que engordam, engordam. Não posso acrescentar nem uma grama ao meu peso.

Fala alto, chama a atenção dos outros clientes.

Para despistar, Dalila fala do último filme que as duas viram no dia anterior.É uma história de terror, nunca vi cenas tão pavorosas. Começa a narrar a história do filme.

— Tá bom, tá bom. — Interrompe Clovis. — Eu acredito que seja mesmo um filme terrível, mas não precisa contar.

Dalila insiste na narrativa. Clovis detesta essa mania da esposa, de contar capítulos de novela, filmes, enredos de romances. De novo não deixa a mulher falar.

— Olha, acredito em você, o filme deve ser horrível. Mas, não conta não, por favor.

— Puxa, Clovis, assim não dá. — Dalila está aborrecida. — Não falo mais nada com você.

— É isso aí, Dalila. O Clovis só quer conversar sobre assunto que lhe interessa.

Clovis não responde. Já não tem mais paciência para responder os ácidos comentários da cunhada. Todos se calam, entretidos com a refeição. O clima é de tédio.

Após a refeição, Dorinha se anima.

— Vamos à praça da Assembléia, quero tirar algumas fotos.

Lá vão os três. Enquanto andam pela praça, tentando quebrar o gelo da esposa, Clovis puxa conversa. Dorinha fala de sua filha, que acaba de desmanchar o noivado.

— Já é o terceiro ou quarto noivado que ela desmancha, não é, Dorinha?

Dorinha não gosta da pergunta. Começa a explicar a atitude da filha.

— A culpa não é dela, é desses moços sem-vergonha. Não tem mais homem que preste.

— Desculpa, Dorinha, não queria aborrecê-la.

— Mas me aborreceu.

— Desculpa, mais uma vez. Foi grosseria minha.

Dorinha insiste em mostrar seu desagrado. Fala alto, diversos transeuntes olham para os três.

— Ok, Dorinha, não está aqui quem falou. Me desculpa e encerramos o assunto.

Dalila, que havia prometido não falar mais com Clovis, entra na conversa.

— Puxa, Clovis, você hoje está de amargar, hein? Não se pode falar nada com você que a conversa desanda.

Clovis ignora o comentário da esposa.

— Tou indo embora. Vocês querem ir ou preferem ficar por aqui? Se quiser, Dalila, você fica com o carro.

— Mais essa, agora! Sai com a gente e quer voltar sozinho? Não senhor, vamos todos juntos, como viemos!

No carro, de volta para casa, amuo geral. Ninguém fala com ninguém.

Dalila é uma mulher viva, inteligente. Quando está longe da irmã. Mas ao lado de Dorinha, se transforma, se submete aos caprichos, concorda com tudo o que a irmã fala e faz. Chega a ponto de imitá-la. Freud explicaria: as duas foram criadas muito unidas, inseparáveis, e Dorinha, mais velha, exercia grande influência na irmã. Influência que não desapareceu quando se separaram, com o casamento de Dalila. Talvez o tamanho de ambas também esteja na base dessa estranha relação. Dalila é uma mulher pequena, miúda, um pouco retraída. A irmã, em que pese o tratamento diminutivo, é grande, gorda, encorpada. E nada faz para disfarçar sua presença: é falastrona, veste-se com roupas floridas, coloridíssimas. Caminha com a delicadeza de um elefante.

Dalila fica meio tonta quando está com Dorinha. Clovis matuta, enquanto dirige o carro de volta à casa. Também, não é pra menos, a cunhada não pára um só instante de falar bobagens e fazer coisas idiotas.

Clovis é o marido pacato, tranqüilo, tem lá suas idiossincrasias, mas nada que possa afetar a felicidade conjugal. Gosta de sair com Dalila, ambos apreciam o teatro, cinemas, bons restaurantes. Viajam constantemente. Por conta de Clovis, estariam naquele momento bem longe dali, viajando. Mas Dalila insiste em que a irmã venha passar com eles pelo menos duas semanas por ano.

— Coitada, vive às voltas com seus alunos, e em casa é aquela trabalheira. Gosto de que ela venha espairecer aqui.

— Trabalha muito porque quer. O marido ganha bem, fatura alto com seus trambiques, com aquelas bugigangas e inutilidades que traz do Paraguai. Fazendo contrabando, é só o que deu, não tem profissão, nem estudo, nem emprego.

— É só de vez em quando que ele vai fazer compras no Paraguai.

— Abre os olhos, Dalila. O Raimundo só vive disso, sabia? Quando não pode ir, enche um ônibus de falsos turistas, paga as despesas de todos. Na volta, o ônibus vem entupido de mercadoria contrabandeada, que vai direto pras mãos dele. Tem mais de cinqüenta “laranjas” trabalhando pra ele. Na compra e na venda do contrabando.

— Ah, isso todo mundo faz. E a Dorinha não tem nada a ver com o negócio do marido, ela é muito correta.

— Correta a ponto de fechar os olhos para os trambiques do marido.

Dalila não responde. Sabe de tudo o que o marido lhe diz, mas tem realmente pena da irmã, que luta para manter seu casamento. As duas filhas, já passadas dos trinta, não conseguem casamento e já estão “para titia” .Puxaram à mãe, são exigentes e não tem homem que sirva. São problemáticas, não trabalham e Dorinha se preocupa com o futuro das duas.

Após o almoço no restaurante chinês e o passeio (com direito a fotografias) na Praça da Assembléia, Clovis ficou longe das duas. Em casa, elas se trancaram no quarto ocupado por Dorinha nas duas últimas semanas. Dalilia ajudando a irmã a arrumar as malas.

Lancharam em casa. À mesa do lanche, o humor de todos já estava melhor.

— Olha, Dorinha, tenho uma encomenda para o Raimundo. Comprei um livro, acho que ele vai gostar. — Clovis entrega um embrulho à cunhada.

— Que livro é este ?

— É um livro que está agradando muito. “O maior vendedor do mundo”.

— Você está brincando! Você acha que o Raimundo vai ler esse livro? Ainda se fosse um livro de piadas, ou de sacanagens, garanto que ele lia. Mas livro desse tipo, jamais que ele vai ler. Pode deixar, Clovis, não precisa não, ele não vai ler mesmo.

— Mas, Dorinha... Você também pode ler, vai gostar, tenho certeza. Não é livro de vendas, não. Tem muitos ensinamentos, tem mudado a vida de muita gente.

— E o Raimundo, por acaso, está querendo mudar de vida?

— Ai, Clovis, você com essa mania de dar livros pra todo mundo! — Dalila entra na conversa. — Também duvido muito que o Raimundo leia esse livro.

Clovis guarda o pacote e se recolhe no mutismo. Puxa vida, nem querendo agradar consigo entrar nesse mundo mesquinho e idiota de Dorinha.

Já vai tarde, pensa Clovis, enquanto dirige o carro, rumo à estação rodoviária. Quinze dias de Dorinha já está de bom tamanho. Mais um dia dessa dupla Dorinha & Dalila, e eu acabava ficando pinel.

Instalada no seu banco, abre a janela do ônibus e abana o braço, enquanto o veículo deixa a estação rodoviária, gritando:

— Tiau, gente! Obrigada por tudo! Ano que vem tem mais!

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE – 8.MARÇO.2001

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Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 18/03/2014
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