A MENTIRA TEM PERNAS CURTAS

— Oba! Quarta-feira não vai ter aula!

Carlos gostava de estudar, mas gostava ainda mais de um dia de folga, que não fosse sábado nem domingo.

— Quem te falou? — Marcelo também fica contente e quer saber detalhes.

— Foi o Irmão Raimundo. É dia de São José. Dia do aniversário do Irmão José.

Falavam do diretor do Colégio Municipal, dirigido pela Congregação dos Irmãos Lassalistas

— Não é dia do aniversário do Irmão José. É dia do onomástico. — Dorival entra na conversa para explicar a razão do feriado.

— Ono... o quê?

— Onomástico. Os irmãos não comemoram aniversários, eles comemoram o dia do santo do nome deles. Daí que na quarta é dia de São José, o Irmão José...

— Tá bom, já entendi. Que é que a gente vai fazer?

— Primeiro, a gente tem de assistir à missa aqui no Colégio. — Dorival, que está no Colégio há mais tempo, explica o ritual da celebração da data. — E vai ser realizado um jogo de futebol entre os dois times do Colégio. Vai ter até um troféu pro time que ganhar.

— Prefiro ir nadar no rio Santana. — Carlos pensa nas delícias de uma manhã sem aulas.

Jaime, irmão de Dorival, entra na conversa:

— A gente vai depois da missa.

O dia de São José amanheceu esplendoroso, mesmo que, pela tradição, pudesse estar sujeito a chuvas e trovoadas, desses temporais de fim de verão, que causavam as “enchentes das goiabas”. Um dia perfeito para nadar nos pequenos rios das redondezas.

Do pátio do colégio, os alunos foram à capela. Cochicham intermitentemente durante a celebração, acertando detalhes do que fazer depois da missa.

— Ite, missa est. — Quando Padre Cassiano dá a missa por encerrada, saem atabalhoadamente da capela e se reúnem no portão principal. Meia dúzia de garotos levados da breca, sempre juntos para suas traquinagens, escapadas, artes e malandragens.

— Vamos pro poço do Gudim. — Conclamou Piaça.

— Não, é longe, hoje temos de voltar cedo, antes do meio-dia. — Carlos precisa voltar para casa no horário de costume. — Melhor ir pra ponte do Santana.

— Tá bom. — Concordaram e partiram de imediato.

O rio Santana passa, indolente e calmo, sob a ponte da estrada que vai da cidade ao local conhecido como Água Quente. Ao longo do seu trânsito remansado, há praias de areia fina em ambas as margens, que se alargam na época da seca e estreitam, como agora, na estação das chuvas. Na época das chuvas, o rio sobe, a correnteza fica mais forte e forma poços mais profundos. Os garotos, intimoratos, pulam do alto da ponte e mergulham nas águas frescas. A proibição de freqüentar aquelas águas é generalizada. Todos os pais temem pelos filhos que, apesar da proibição, escapam constantemente para nadar no Santana.

— Se você fugir de novo pra nadar, vai apanhar de vara fina. E não me venha com mentiras esfarrapadas. — A ameaça do pai, na última vez que fora nadar no Gudim, ainda estava fresca na memória de Carlos. Mas a gente volta antes do meio-dia, ele nem precisa saber que não teve aula.

Muito espertamente, Carlos não tinha falado com os pais do feriado no Colégio. Assim, poderiam ir nadar e voltar para casa na hora de costume. Não estou mentindo, só não falei que hoje não tem aula, justifica-se intimamente.

Pulando da ponte, mergulhando nos poços, atravessando o rio a nado, tomando sol na areia fina, os garotos passam as horas da manhã. O sol está quente e eles brincam completamente nus. Esquecem do mundo, não se dão conta do tempo. Nem fome sentem. Mas quando sopra um ventinho fresco, olham para as bandas do poente.

— Vem chuva, gente! Vamos simbora !

Vestem-se numa correria. O vento chega de repente, levantando a areia fina. As nuvens escuras cobrem o céu em poucos minutos. O tempo fecha bruscamente. Trovões e relâmpagos anunciam a proximidade do temporal.

Os meninos saem correndo, alguns ainda com os sapatos nas mãos. Carlos, que tem as pernas curtas, vai ficando para trás. Dorival grita:

— Fiquem longe das árvores. Pode cair raio em cima delas.

Começa a respingar. Apenas havia Dorival dado o aviso de alerta, os garotos vêem, estarrecidos, um raio fender uma grande árvore no topo do morro. Um estrondo insuportável acompanha o clarão. A árvore se incendeia e os garotos disparam como loucos pela estrada. Carlos tropeça e cai, ralando os joelhos e as palmas das mãos no cascalho. Levanta-se num átimo e continua, na rabeira da turma.

Forçosamente, têm de passar pela chacrinha do seu Zé Parente, pai de Dorival e Jaime. Quando chegam na porteira do pequeno sítio, o temporal desaba com toda sua força.

Dona Dulcinéia, mãe de Dorival e Jaime, procurou acalmá-los. Indagando, percebeu que os garotos estavam aprontando alguma enganação. Mas não ralhou com eles. Pelo contrário, serviu-lhes um alentado café com várias quitandas. Trabalhadeira por demais, tinha sempre broas, pães e bolos feitos por ela e orgulhava-se de suas habilidades no forno e no fogão, ao redor dos quais vivia.

A chuva estiada, os garotos da cidade se põem a caminho de casa. Já passava das três horas e os meninos agora pensam na “desculpa” que vão dar aos pais.

— A gente fala que ficou assistindo à partida de futebol, que depois teve lanche e veio a chuva. — Sugeriu Piaça.

— É mesmo! Eu vou falar que nós ficamos no colégio por causa da chuva. — Carlos aceita a idéia de Piaça. — Eu não posso mesmo tomar chuva, que logo fico resfriado. Então, mamãe vai até achar que fiz bem em ficar no Colégio, esperando a chuva passar.

— É, mas como é que vamos explicar nossas roupas molhadas? — Marcelo preocupa-se com sua calça ainda bem úmida.

— Meu filho, onde é que você andava até esta hora? — Dona Neuza está em polvorosa. Carlos sempre avisa quando há mudança de horário. O que ela ignora é que Carlos, muito espertamente, nada havia dito sobre o feriado.

— Uai, mãe, tava no colégio. Teve uma partida de futebol e depois começou a chover. Aí, fiquei esperando a chuva passar.

Ela não acredita nem desacredita. Está aliviada pela chegada do filho.

— Deixei seu prato feito no forninho do fogão.

Carlos está empanturrado pelo café de D. Dulcinéia e aumenta na mentira.

— Não tou cum fome, já lanchei no colégio.

— Seu pai tá muito brabo. — Foi pro colégio assim que a chuva passou. Você não encontrou com ele no caminho?

Carlos ficou alarmado. Puta merda, papai vai descobrir que eu não estava no colégio. Tenho de inventar outra história.

Não teve tempo. Seu Clarindo chega no instante e vem feroz como uma onça.

A mentira é descoberta. Carlos confessa enquanto a mãe chora de desgosto. O pai puxa o garoto pela orelha, levando-o para o quintal. Vão até a velha macieira. Silenciosamente, tira do bolso o canivete afiado e corta uma vara longa e fina, reta e flexível, da qual apara cuidadosamente os nós e as folhas, alisando-a com vagar. Parece sentir um grande prazer no preparo do instrumento de castigo.

Carlos começa a soluçar, antecipando o choro que virá com a tunda. O pai não se comove e continua preparando a vara. Quando esta já está pronta, fala com Carlos.

— Filho, na primeira vez eu te falei que te dava uma surra de vara, se mentisse de novo. Agora, estou preparando a vara, tá vendo? Bem fininha. — Passa a vara diversas vezes sob o olhar apavorado de Carlos. — Mas vou te dar mais uma chance. Vou guardar a vara aqui no telheiro. Tá vendo? Na próxima vez, seja homem, fale a verdade, ou vou ter de usar essa varinha aqui no seu lombo. Preste bem atenção, porque a mentira tem pernas curtas.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte – 27- março – 2001

CONTO # 81 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 21/03/2014
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