CÃO PERDIDO SEM COLEIRA

É por aqui, depois daquela curva acho o caminho. O Cãozinho passa rapidamente pela estação do metrô, cruzando com o Velho de cabelos brancos. Snif, snif. Não, não é por aqui. Farejando de um lado e de outro da rampa circular, o animal não identifica mais nenhum odor. Estou mesmo perdido. Vou voltar.

O Velho, tendo atravessado a pequena estação do metrô do Calafate, pára um pouco, faz exercícios de alongamento. Vou voltar daqui. Não tenho muito tempo hoje, devo ir ao dentista dentro de uma hora. Ao passar novamente pela parte de trânsito de pedestres, que liga a praça à movimentava avenida, cruza de novo com o Cãozinho. Lá vem ele de volta. Os olhares do homem e do animal se cruzam. Ops! Ele tá procurando o dono. Parece estar perdido. O velho olha para todos os lados, só vê dois funcionários do metrô, conversando displicentemente junto às borboletas de ingresso à plataforma. Pára e olha para trás.

Tendo cruzado com o velho, o Cãozinho sente um odor familiar. Ah, já passei por esse homem faz pouco tempo. Estaca e olha para o homem. Novamente os olhos do Velho e do Cãozinho se encontram.

— E aí, meu amiguinho, tá perdido? — O Velho pergunta numa voz baixa e afável, não querendo ser ouvido pelos empregados, que continuam conversando, alheios ao Velho e ao Cãozinho. Se me vêem conversando com um cachorro, vão pensar que estou caducando.

O cãozinho fareja o caminho pelo qual passou o Velho. Snif. Snif. Humm! Que cheio bom. Ele tá conversando comigo.Vou acompanhá-lo. Fazendo meia-volta, com seus passinhos rápidos refaz o percurso, agora no encalço do Velho, que desce a rampa circular. Mas não foi este caminho por que passei agora mesmo? De qualquer modo, gostei do olhar do homem. Ele é um bom homem. Correndo, alcança e ultrapassa o Velho.

— Ah! Encontrou seu caminho, hein, danadinho? — O Velho observa o pequeno animal. É um pincher: perninhas curtas e mesmo com as orelhas eriçadas, sua altura não vai além de trinta centímetros. Algumas manchas no pelo mostram antigas cicatrizes. Tem a pelagem de um cachorro velho, terá uns quinze anos. Deve ser um cachorrinho valente.

O Cachorrinho agora caminha, sempre em passo acelerado, à frente do Velho. Volta-se constantemente, olhando-o. Não posso perder esse homem de vista. Tenho certeza de que me levará de volta à minha casa. Pára, assustado, no início da rampa: uma motoca passou rente, ele leva um susto. Putz! Essa máquina quase me pega! Aguarda o Velho sem se sentar.

— Vamos, garoto, vamos atravessar a praça. Seu dono deve morar por aqui. — Ainda falando baixo, pois agora tem gente chegando para pegar o metrô. Sem saber, o Velho já criou um vínculo com o Cãozinho: ele sente que o animal está perdido e está penalizado ao mesmo tempo em que o pincher sente segurança na sua companhia.

Atravessam a pracinha: o Cãozinho corre à frente, fareja aqui e ali, espera o Velho. No final da praça, atravessam a rua com segurança. Ambos continuam a caminhada, passando defronte a inúmeras casas com portões gradeados. Sua casa deve ser uma dessas aí. Vai, acha logo! O animal fareja, procurando sempre. Entra em diversas casas, através das grades dos portões, mas volta sempre. Até ao final do lance de casas residenciais. Não tendo encontrado sua casa, acompanha o Velho.

— Vai, acha sua casa! — O Velho já toma o rumo de sua própria casa. Se esse pincher continuar me seguindo, vou ter amolação quando chegar em casa. Rosália não tolera cachorros. Mas ele mesmo não gosta de animais domésticos. Pra quê? Já não bastam os cachorros da vizinhança, latindo o dia inteiro nos quintais? Mas esse aí até que deve ser tranqüilo, não deu um latido até agora.

O Cãozinho sente-se cada vez mais perdido. Putz! Não sinto nenhum cheirinho familiar. Agora, tenho de ir atrás deste homem. Tenho certeza de que vou pra casa. Nem que for pra casa dele.

O Velho pára numa esquina. Se for direto pra casa, esse Cachorrinho vai me acompanhar, e vou ter dor de cabeça. Ele vai passar pelas grades do portão e se acomodar na garagem ou no alpendre. Vou enganá-lo. Deixo ele correr na frente, viro na outra direção e despisto.

O Cãozinho olha pra trás, não vê mais o Velho. Corre de volta, esfalfando-se na carreira, mas ainda vê o senhor se esgueirando por um beco. Ah! Já estamos perto, aquele deve ser o caminho da casa do homem. Alcança e ultrapassa o Velho.

— Pára! Pára aí! Senta! Fica quieto! — O Velho se exaspera com o Cachorrinho, que retribui a zanga com um olhar ainda mais submisso e meigo. Sabe que não será obedecido. Este cachorrinho vai me seguir até em casa! Puta merda! Não posso chegar nem mesmo no meu quarteirão, ele já conhece meu cheiro, não me larga mais. Vou voltar, passo de novo pela estação do metrô, quem sabe ele não descobre a pista, o caminho de sua casa. Olha o relógio. Já estou atrasado para o meu dentista. Que chateação! Refaz o percurso percorrido, agora em largas passadas. Quem sabe ele se cansa e desiste de me seguir?

Uai! O homem está voltando. Será que ele mora do outro lado? Com paciência, o animalzinho toma o rumo do Velho. Ultrapassa o homem e segue em frente, sempre olhando pra trás, checando a sua presença.

O Velho se sente incomodado. O pincher o está seguindo há mais de meia hora, não dá sinais de cansaço, nem encontra pistas que o orientem. Passam por uns barracos construídos por “sem tetos”. Uai! Esse pessoal é novo por aqui, faz quinze dias aqui não tinha nada neste canto. Num fogão rústico, de pedras, uma lata de dezoito litros solta vapor. Dois homens sujos e esfarrapados vagueiam pelo local. Quando percebe, o Velho já está perto do barraco, do fogão e dos homens. Dois cães, não muito maiores do que o Cãozinho, avançam. O Cãozinho corre para perto do Velho, embaraça-se nas suas pernas. Ele espanta os dois cães, que teimam em seguir o Cãozinho, farejando seu coto de rabo. Depois de um pequeno trecho, desistem e voltam para os miseráveis donos.

Quem sabe esses mulambentos não ficariam com o Cãozinho? Pensa em voltar, oferecer-lhes o cachorrinho, mas logo tem um surto de bom-senso. Os pobres diabos não têm sequer o suficiente para eles mesmos, mais uma boca, mesmo sendo canina, vai ser demais. Preocupado, consulta o relógio. Pombas, já faz mais de hora que estou rondando o bairro com este Cãozinho! A hora marcada com o dentista já passou. E o bichinho nem dá sinal de cansado.

Caminharam, o Velho e o Cãozinho, por mais meia hora pelo Prado, Carlos Prates e Padre Eustáquio. Desanimado e cansado, sem saber o que fazer, o Velho dirige-se pela terceira vez à estação do metrô. Vou ter de abandoná-lo por ali. Quem sabe seu dono (ou dona) aparece. Vou passar por ruas diferentes, para ver se o Cãozinho encontra uma pista.

O Velho apura o passo e olha o relógio: Que chateação! Por causa deste pincher minha caminhada usual de trinta minutos já dura quase duas horas.

Na próxima esquina, uma jovem morena está por perto de um treiler de sanduíches. Acabou de varrer os arredores, está arrumando algumas cadeiras. É quando vê o Velho e o Cãozinho.

— Gigante! Donde é que você tá vindo? Ah, cachorrinho danado!

— Você conhece esse Cachorrinho?

— Claro! É o Gigante do papai. Tá sumido desde ontem. — Agachando-se, afaga o animalzinho, que parece estranhar a moça.

— Tem certeza de que ele é o Gigante?

— Claro! Vem, vem, a titia tem um pedaço de pizza pra você. — E puxa o cãozinho pra dentro do treiler.

Ainda bem que me livro dessa responsabilidade. Mas, e se essa moça estiver me enganando? Ah! Deixa pra lá, se ela quer o Cachorrinho, que fique com ele. Alíás, pra chamar um catatau desse de Gigante, é porque ela o conhece mesmo!

Antonio Roque Gobbo –

Belo Horizonte, 29 de julho de 2001.

CONTO # 107 DA SERIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 31/03/2014
Reeditado em 03/04/2014
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