A VOZ DO BRASIL

— Em Brasília, dez...e...nove horas. No ar, “A “Voz do Brasil””!

A voz nordestina arrastada na malemolência anuncia mais uma edição do programa oficial de notícias dos atos e fatos político-administrativos federais do dia.

— Pombas, Gustavo, você gosta mesmo de ouvir essa porcaria aí, hein? — Comentário de Juventino Norato, amigo de há muitas décadas de Gustavo.

— É o noticiário mais gozado que se pode ouvir. Não tem nada melhor, vindo de Brasília.

Aos 88 anos, Ariel Gustavo não dispensa os minutos que passa ouvindo o mais antigo informativo radiofônico do país. Quer seja no seu radinho de pilha, que o acompanha por onde vai, quer seja no elegante aparelho de rádio (um pouco antigo, é verdade, de mais de 40 anos de uso). Está sempre atento para as notícias transmitidas pela emissora oficial.

— Porque você não vê o “Jornal Nacional”, na televisão?

— Ora, sô, não vê que aquelas notícias da Globo são todas direcionadas? Só dão o que interessa pro Roberto Marinho e suas empresas. Besta de quem acredita nas notícias da Globo.

— E a “Voz do Brasil”? Não dá notícias “oficiais” do Planalto? Só se ouve o que o governo federal divulga.

— É. Mas é muito mais engraçado. Pitoresco.

— Não sei como.

— Ora, veja como a “Voz do Brasil” dá as notícias. De maneira delicada, sem ofender ninguém, com elegância. Agora mesmo, nesta crise de energia elétrica, jamais fala-se em “apagão” nem racionamento de energia. Falam de “momentos críticos de corte de energia” e “uso adequado e limitado por parte dos consumidores”.

Gustavo tem razão. A “Voz do Brasil” é um programa que foi criado no tempo da Segunda Guerra Mundial e era diretamente manipulado pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) do Governo de Getúlio Vargas. Dava as notícias da guerra com a mesma indiferença com que avisava os navios do litoral das condições de funcionamento dos faróis da costa brasileira. Muito diferente da vivacidade do “Repórter Esso”, este sim, um noticiário dinâmico, irradiado diversas vezes ao dia, e com edições extraordinárias quando uma notícia importante acontecia.

Como criação de um órgão de propaganda oficial do governo, jamais se livrou do ranço da notícia manipulada. Os eventos mais importantes do país sempre foram elaborados, adaptados às circunstâncias do momento, atendendo sempre aos interesses do regime em exercício do poder.

— Não sei como notícias administrativas e políticas possam ser engraçadas ou pitorescas. — Apesar da convivência amigável através dos anos, Juventino nunca concordava com Gusmão. — Só você pode achar graça nessa “Hora do Brasil” tão boba.

— Claro que é engraçado. Você se lembra de quando o Getúlio se suicidou, metendo uma bala no peito, da forma mais desastrada e dramática? Totalmente fora dos padrões de comportamento de um homem que já tinha sido ditador e dera a volta por cima, elegendo-se para presidente numa eleição disputadíssima?

— Sim, claro que me lembro. Ele não agüentou a pressão de Carlos Lacerda e seus artigos na “Tribuna de Imprensa”. Lembro-me bem. Gregório Fortunato, o seu “escudeiro” estava mergulhado até o pescoço na lama da corrupção. Foi a única saída que ele encontrou: suicidou-se.

— Pois é. Sabe como a “Hora do Brasil” — em 1954, ainda era conhecida como “A Hora do Brasil” — noticiou o lamentável drama do suicídio de Getúlio Vargas? Se não me falha a memória, foi mais ou menos assim: “Foi encontrado morto em seu quarto, nesta manhã, o presidente da república, doutor Getúlio Dorneles Vargas, etc. etc.” Nenhum pio sobre o suicídio, sobre os eventos da noite anterior, a movimentação de gente no Palácio do Catete durante a madrugada. E nada sobre a carta-testamento, deixada pelo presidente suicida. Não é muito engraçado, pitoresco?

— Se você acha assim...

— Lembro-me também de quando o Jânio renunciou. O Brasil inteiro já sabia, à noite, quando a Hora do Brasil começou sua irradiação, que o maluco renunciara, pensava que sua renúncia não seria aceita e que lhe seriam concedidos poderes especiais. Um grande blefe, uma confusão danada, que foi noticiada, se bem me lembro, em palavras melífluas: “Durante todo o dia de hoje, foi grande a movimentação de autoridades oficiais em torno do Sr. Jânio Quadros, que, em cerimônia comemorativa do Exército Nacional, apresentou seu pedido de renúncia do elevado cargo de presidente da república, para o qual fora eleito em eleições democráticas no ano passado.” Nunca vi uma notícia mais “limpa”. Gosto deste tipo de tratamento. Nada de tragédias, de desgraças. Tudo no mais lindo dos mundos.

— Mas não é a verdade.

— Não, o noticiário é verdadeiro. Não mente jamais. O bom da coisa é a maneira com que maquiam as notícias. Dão notícias de um país das maravilhas, onde os eventos mais trágicos são transformados em suaves informações. De tão suaves, se tornam cômicas.

— Você vive no mundo da lua. Só assim para aceitar essa ““Voz do Brasil””.

— Não, Juventino. Esse noticiário presta bons serviços aos cidadãos. Lembro-me de uma vez, me foi de muita serventia. Pra mim e pro meu filho Gustavinho.

E passa a contar, pela enésima vez, como a Hora do Brasil lhe foi de utilidade.

Ariel Gustavo Filho era, no final da década de ‘50, funcionário do Banco do Brasil e trabalhava numa das agências metropolitanas de São Paulo. Vivia com dificuldade. Rapaz do interior, não se adaptara à grande metrópole. Há anos era noivo de Carolina, colega de grupo e ginásio e protelava em marcar a data de casamento. Se era difícil viver solteiro, imagine casado! Tentara explicar a situação à noiva, e, principalmente, aos pais de Carolina, que insistiam em marcar a data.

— Você já tem boa situação, ganha bem, não vejo por que protelar ainda mais. — O pai da noiva fora curto e grosso. — Este noivado longo já está dando o que falar na cidade.

— Quero conseguir uma transferência pro interior, não gosto de São Paulo. Carolina concorda comigo. Quero mudar-me da capital antes de nos casarmos.

— Moço, cria tento! Essa transferência não chega nunca! Carol não pode esperar mais.

Gustavinho estava num beco sem saída. Se não casasse logo, perigava perder Carolina. Tentara obter transferência para uma cidade pequena, do interior do estado, inutilmente. Transferência, casamento, mudança, as idéias atropelavam-se em sua cabeça. Não via solução.

Seu Gustavo não dispensava o informativo da “Hora do Brasil”. E não é que, numa noite quente, meados de outubro, ouviu uma notícia de muita utilidade?

”O Presidente do Banco do Brasil assinou portaria criando dezoito novas agências do banco, nas seguintes cidades do país.” — A notícia começava assim, sem grande alarde, e prosseguia na relação de cidades onde seriam abertas as novas agências. Seu Gustavo não deu maior atenção, até que ouviu, no final da lista, o nome de sua cidade —“... e São Roque da Serra, Estado de Minas Gerais”.

Mas é aqui! Uma agência aqui na cidade! — Levou um susto. Do qual logo se refez. Chamou a esposa.

— Naninha, corre aqui. Tem uma notícia boa pra te dar.

— Que foi, Gustavo? Que notícia é essa?

— Vão abrir agência do Banco do Brasil aqui na cidade! Gustavinho pode vir pra cá, trabalhar aqui!

Gustavinho estava preparando-se para sair, ir ao cinema, quando o telefone da pensão tocou. Dona Matilde atendeu, logo chamou o rapaz:

— Gustavinho, interurbano pra você!

A voz do pai chegou meio distorcida, mas alegre. Gustavinho quase não reconheceu.

— Deu na “Hora do Brasil”. Vão abrir agência do Banco do Brasil aqui na cidade.

— Ora, pai, deve ser boato.

— Não, a notícia é séria, a “Hora do Brasil” não mente. — Seguiram-se os detalhes e o conselho final.

— Vai pro Rio, meu filho. Cavouca sua transferência. Fala com o Dr. Carlos, ele arranja tudo pra você.

Era uma sexta-feira à noite. Na segunda-feira, Gustavinho estava no Rio, conversando com o Diretor de Pessoal e com o influente deputado serrano, Dr. Carlos Prado. Foi mais fácil do que pensara.

— É só você formalizar o pedido de transferência, vai ser o primeiro funcionário da agência. — Assegurou o Diretor do Banco. — Mas a portaria foi assinada na sexta-feira, como é que você ficou sabendo?

— É que meu pai ouve a “Hora do Brasil” todas as noites. Ele escutou no mesmo dia em que foi assinada.

— Ah, bom....”Hora do Brasil”? Tá muito bom.

Gustavo termina a narrativa com uma assertiva que não deixa dúvida alguma.

— Essa foi a notícia mais verdadeira que já ouvi na “Hora do Brasil”.

Antonio Roque Gobbo – Belo Horizonte, 23 de agosto de 2001.

CONTO # 112 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 02/04/2014
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