UM DOMINGO EM FAMÍLIA

Domingo de noite era a pior hora da semana. O dia todo fora movimentado com a chegada dos tios, tias e primos, para o almoço ajantarado. Gustavo acordava cedo, mais cedo do que os dias de semana, e punha-se diligentemente a engraxar os sapatos de ir à missa. Porque tinha calos nos dedos mindinhos do pé, resistentes a todos os calicidas que usara, acabou por conviver pacificamente com eles. Todos os seus sapatos eram cortados, pequenas incisões em forma de cruz, nos locais onde os calos atritavam. De forma que o cuidado extremo em fazê-los brilhar punha em evidência as marcas que significavam alívio para seus pés.

Levava meia hora para engraxar e lustrar os sapatos. Em seguida, trocava o pijama pela roupa domingueira, usada para ir à missa e outras cerimônias religiosas, como casamentos e procissões da Semana Santa. Dar o nó da gravata era o problema, sua mão esquerda não chegava até o pescoço, devido a uma seqüela de acidente na sua oficina de marceneiro.Catarina vinha , então, em seu auxílio. O nó nem sempre saía a contento, ele não gostava de nós grandes, tinham de ser pequenos, bem ajustados ao colarinho da camisa. Mas, enfim, acabavam, ele e a esposa, acertando o nó.

— Experimenta essas rosquinhas, foram feitas pela dona Claudina. — A esposa passava-lhe o prato e o marido não se fazia de rogado. De todas as vizinhas, dona Claudina era a que fazia as melhores quitandas e mandava todos os sábados um prato da fornada daquela tarde.

Gustavo tomava o café já pronto para sair. Era beber o último gole, passar pelo porta-chapéus, apanhar o seu Ramenzoni e chamar pelos dois filhos.

— Vamos, garotos, já estamos atrasados.

Iam os três sistematicamente à missa das oito horas na Igreja de Nossa Senhora da Abadia. O pai caminhava em passos curtos e rápidos, decidido. Os meninos tinham que se esfalfar para acompanhá-lo. O que não os impedia de atravessarem a rua, irem ao outro lado a ver a vitrina da casa do Dim Danilo. Era o único estabelecimento que tinha vitrina, uma abertura mais larga do que as outras duas portas, ocupada por enorme vidro. Atrás do vidro estavam bonecas, cavalinhos de pau, piorras, fitas, linhas, tecidos, e uma centena de outras amostras do estoque variado da Casa Danilo.

Durante alguns instantes, os irmãos Marcos e Mário admiravam a vitrina, notavam os brinquedos novos e disparavam na cola do pai.

— Vou pedir aquele cavalinho de pau pro Papai Noel. — Na corrida, Marcos falava para o irmão.

— Cê é besta mesmo, ainda acredita em Papai Noel ! — Mário, mais velho, já freqüentava a escola, sabia de coisas que o irmão nem entendia.

A missa era chata, sim, mas pela metade, os dois escapavam e iam ficar na frente da igreja, onde corriam enturmados com os outros garotos. Na verdade, toda a garotada ia à missa para ganhar um pacotinho de balas, distribuído aos que freqüentavam a reunião da Cruzada Infantil. Marcos nada entendia do que era falado na tal reunião dos cruzadinhos e Mário tinha de ficar explicando para o irmão os mistérios da iniciação da grande irmandade da Cruzada Infantil. O que interessava mesmo era o pacotinho de balas.

O pai esperava os meninos à saída da reunião, realizada numa sala nos fundos da igreja. Voltavam serelepes, em volta do pai.

— Pai, quer uma bala?

— Me dá uma de coco.

Quando chegavam em casa, alguns primos, tios e tias já tinham chegado. Tio Cornélio e Tia Esmeralda eram os que chegavam mais cedo. Moravam numa pequena chácara situada um pouco além do cemitério, a uns cinco quilômetros de distância. Deviam madrugar para se aprontarem e aos filhos (eram cinco) e ainda assim chegar à casa de Vovô Nicola ao mesmo tempo que o Gustavo e os dois garotos, vindos da missa.

O ritual de cumprimentar os tios e tias se repetia. O beija-mão indispensável, aqueles afagos não muito bem-vindos, principalmente as tias apertando as bochechas dos garotos.

— Bença, tio, bença, tio. — Mário não dava chance aos carinhos, corria logo para o quintal, onde já estavam os primos, brincando nas árvores esparsas entre canteiros de verduras. Misturam-se de imediato. A mãe grita da porta da cozinha:

— Meninos, venham trocar de roupa, não sujem a roupa de ir à missa !

O avô Nicola era o venerável patrono da reunião dos domingos. Fazia questão de que todos os filhos se reunissem na sua casa, independente dos compromissos que cada um pudesse ter. O almoço aos domingos era sagrado, uma reunião familiar cuja tradição ninguém cogitava de romper.

Enquanto filhos e filhas, noras e genros, netos e netas iam chegando, vovô ia diligentemente abrindo as garrafas de vinho para serem servidas no ajantarado. Todavia,os adultos,assim que chegavam, iam cumprimentá-lo e, ali mesmo, debaixo das parreiras que forneciam as uvas para o fabrico do vinho, começavam a degustar o artesanal e suave, mais ao gosto das mulheres do que dos homens.

— Questa safra sta eccelente! — Para ele, nonno Nicola, todas as safras de seu vinho eram safras excelentes. Há anos sem conta que ele fazia seu vinho e o processo jamais variava. Nos últimos anos, a idade aumentando, o velho Nicola era ajudado pelo genro Gustavo, mas sempre sob sua supervisão direta.

— Ma non se fá um buon vino senza experiência.

Na grande casa moravam vovô Nicolau, a avó Bia, Gustavo e Catarina, os meninos Marcos e Mário. Fora construída quando a família estava crescendo, para abrigar os nove filhos de Nicola e Beatrice. Quartos e mais quartos ao longo de um comprido corredor. Uma sala de jantar enorme, a sala de visitas sendo um verdadeiro salão de bailes. Na cozinha podiam ser feitos banquetes para muita gente (e muitos banquetes foram, sim, realizados na casa do avô). Sem falar nas varandas em dois lados da casa, que refrescavam sobremaneira todos os cômodos que tinham janelas ou acesso para o lado externo. Havia, ainda, um pequeno páreo interno, com um jardim onde nada crescia com vigor, devido à sombra: apenas alguns pés de teimosas trepadeiras que, subindo pelas colunas e balaústres, buscavam o sol nas alturas dos telhados.

Os filhos casaram-se todos e cada qual seguiu seu rumo. À exceção de Catarina, cujo marido Gustavo ajudava o sogro nos negócios. Por isso, ficaram morando juntos. Alguns quartos só são abertos aos sábados, para uma limpeza geral, e aos domingos, para serem usados pelos familiares: após o almoço, cada qual vai pra um quarto, fazer a sesta.

Pouco a pouco vão chegando os outros. Quando estão todos juntos, são mais de quarenta pessoas: cinco filhos, quatro filhas, genros e noras e vinte e dois netos (por enquanto: a maioria dos casais ainda está em idade de ter mais herdeiros).

O almoço é servido por volta do meio-dia. A mesa da sala de jantar é ampliada e duas toalhas são necessárias para cobri-la. Todos os casais se sentam à mesa. O velho Nicola tem seu lugar à cabeceira, e a avó Bia senta-se à sua direita. Catarina quase não fica no seu lugar, passa a maior parte do tempo indo e vindo da cozinha, no serviço de trazer as travessas com a comida, recolher pratos e talheres. Depois, vai buscar a caçarola italiana, a sobremesa de sempre. Gustavo distribui as garrafas de vinho e de guaraná pela mesa. A conversa corre franca. Há uma nítida separação entre os filhos do casal: os mais velhos, e suas respectivas mulheres, sentam-se no lado esquerdo, e suas conversas são diferentes dos assuntos dos mais novos. Gustavo percebe essas nuances, mas a maioria não se dá conta da divisão em dois grupos.

Os netos e netas adolescentes pegam seus pratos cheios de macarronada e salada de batata e vão sentar-se na varanda: enquanto comem, conversam animadamente e olham os transeuntes que passam pela calçada.

Depois do almoço, os garotos ficam à vontade: no quintal e no pequeno quarto no fundo do corredor, onde tem uma estante com livros e alguns brinquedos velhos. Zezinho e Paulinho do Tio Conrado saem para a praça, vão à matinè, sessão de cinema da tarde com filmes de mocinhos e seriados. Mário também quer ir, mas a mãe não deixa.

No quartinho do fundo do corredor estão Mário, Angelina e Rosamaria. As meninas brincam com uma velha boneca(talvez tenha sido de uma das mães) e Marcos importuna as garotas. Os três tem entre doze e quatorze anos. Ele bolina as primas. Angelina não se incomoda, mas Rosamaria não gosta e sai. Ficam apenas os dois e Mário continua a passar a mão nas coxas de Angelina.

— Quer me mostrar sua calcinha? Aposto que é cor-de-rosa.

— Cê é bobo. Num mostro não.

— Aposto que você nem tá usando calcinha.

— Claro que tou.

— Deixa ver, então.

O diálogo é interrompido com a chegada súbita de Rosamaria, acompanhada da mãe.

— O Mário não quer deixar a gente brincar direito, fica passando a mão nas nossas pernas.

Esperto, Marcos nem espera ser interrogado pela tia. Sai correndo e vai pro fundo do quintal.

Olga, Nair e Adelaide, irmãs de Catarina, ajudam-na a lavar a louça do almoço. Depois, sentadas na varanda do lado da rua, se põem a conversar. Os maridos ou estão repousando pelos quartos ou estão com Gustavo, no quintal. Gustavo se orgulha das parreiras bem cuidadas e da horta, que não se cansa de mostrar aos cunhados.

Pelas seis horas, um café é servido. Tomado informalmente na cozinha, alguns já se despedem. As crianças não aparecem, estão cheias de frutas que comeram no quintal: laranjas, pêssegos, mangas, jabuticabas. Se alguma chega, apressada, só quer um pedaço de bolo, que sai comendo, sem parar com as brincadeiras.

— Menino, pára um pouco, come direito!

Que nada! Eles querem mesmo é correr, pular, brincar. Não têm hora nem lugar para suas peraltices.

Na hora das despedidas, novos beliscões nas bochechas.

— Ufa! Que trabalheira – a mãe está de volta à cozinha, com a avó Bia, lavando xícaras, pires, chaleiras, coadores de café e bules de chá.

— Mãe, deixa que eu acabo a limpeza. Vai pra sala descansar.

A avó Bia não atende, continua andando de lá pra cá, sua saia comprida quase se arrastando no chão. Gustavo e o sogro conversam na sala, pachorrentamente, á medida que as sombras da noite vão se alongando.

Ao dia agitado sucede a noite calma. O Gustavo agora lê uma revista que foi emprestada pelo cunhado. Comenta com a mulher, que faz um tricô:

— Os alemães já estão entregando os pontos. Mas os japoneses continuam resistindo aos americanos. Está aqui na revista que o Heraldo me trouxe. — Mostra para a mulher a revista de propaganda de guerra. É o numero mais novo da “Em Guarda”, bonita, com muitas fotografias coloridas, sobre os cenários da segunda guerra mundial.

— Dulcinéia me falou que o Herculano, seu cunhado mais novo, foi convocado. Ela está com medo de que ele seja enviado para lutar na Itália.

Mário folheia um almanaque do Biotônico Fontoura, sem interesse. Marcos brinca com um carrinho de madeira. A avó Bia, como a filha, está entretida no crochê. O avô Nicola cochila numa poltrona.

— Pai, vai deitar, o senhor está cochilando faz tempo!

— Sto ascoltando. ¬— Despertando de seu cochilo, o velho reage a seu modo. E volta a cochilar.

A luz, dependurada por um fio negro de sujeira, é fraca, o silêncio é entrecortado apenas por cri-cris de grilos e pelo farfalhar do vento sobre a trepadeira. A mesmice de todas as noites desce sobre os moradores do casarão. Quietude e silêncio. Preguiça, tédio.

— Bem, gente, já são nove horas. Vamos dormir, amanhã temos de acordar cedo.

Levantando-se, Gustavo dá o sinal que todos, sem saber, esperam para se recolherem. Como se fosse uma ordem militar, levantam-se e cada qual procura de sua cama.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 31 DE OUTUBRO DE 2001

CONTO # 122 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 05/04/2014
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