FESTA DE FORMATURA

— Tenho certeza de que eles estão tramando alguma coisa. — Gladis, convicta do que afirmava, prevenia as colegas das atitudes suspeitas de Cláudio, Ramiro e Luiz Carlos. — Coisa boa não é...

Ela tinha e não tinha razão. A classe era pequena, apenas onze alunos e todos sabiam de tudo o que se passava entre eles. Oito moças e três rapazes constituíam a classe do terceiro ano da Escola Técnica de Comércio de Girassol, no ano de 1953. Ao longo de três anos de aulas noturnas e muitos encontros fora da escola, a convivência transformou o coleguismo em amizade. A desconfiança de Gladis tinha fundamento: os colegas andavam aos cochichos, faltavam às aulas das quartas-feiras, nenhuma delas sabia onde eles se escondiam.

O diretor da escola era rigoroso nas questões de pontualidade e assiduidade às aulas. Ficava à porta do estabelecimento, todas as noites, após o toque do sino das dezenove horas, sinal da entrada para as aulas, e coitado de quem se atrasava!

— Que foi desta vez, camarada?

— Ai, seu padre, atrasei-me porque saí tarde do serviço.

— Desta vez, passa.

Era tão exigente na pontualidade dos alunos como o era na celebração das missas, para as quais não admitia atrasos dos fiéis. Austero e exigente, Padre Ranzine dirigia com mão de ferro tanto a escola quanto a paróquia.

A escola noturna era freqüentada, em sua maioria, por moças e rapazes que trabalhavam durante o dia. Por isso, os atrasos eram freqüentes e justificáveis. Mas o diretor era implacável. Três atrasos no mês — registrados na fenomenal memória do diretor — implicavam em sérios aborrecimentos para o aluno retardatário. As faltas, então, eram consideradas pecado capital; daí que as faltas semanais dos colegas implicavam as garotas. Como já estavam no último ano e por serem mais independentes (afinal, todos tinham boas notas), o trio de rapazes não dava atenção às reprimendas do diretor, feitas, por diversas vezes, de público, perante todos os alunos — mais de trezentos— do colégio.

Gladis era a mais desenvolta da turma. Alta, elegante, morena de cabelos negros muito compridos, que usava enrolados no topo da cabeça, atilada para assuntos muito além de seus dezoito anos, exercia uma certa liderança entre as colegas. Alegre e muito viva, aprontava brincadeiras entre elas e até com os professores. A sua simpatia compensava a negligência com os estudos, e certamente em mais de uma vez suas notas foram influenciadas por seu modo descontraído e jovial.

— Vou descobrir, sim, o que está acontecendo. — Qual determinado detetive de saias, começou sua investigação e logo chegou com o resultado de suas indagações.

— Adivinhem o que eles estão fazendo nas noites de quarta-feira? Estão aprendendo a dançar!

— Essa não! Os bobocas estão trocando aulas da escola por aulas de danças? E onde é que aprendem? Aqui na cidade não tem escola de danças.

— Vocês conhecem o diretor de festas do Clube Social? Pois é na casa dele que os três têm aulas de danças.

Aos serem descobertos, os moços já estavam adiantados no aprendizado das diversas danças de salão e não se incomodaram em desvendar o mistério.

— Estamos treinando para o baile de formatura. — Cláudio falou pelos três.

A descoberta de Gladis seria crucial para os planos do grupo. Planejavam coroar as festividades da formatura do curso comercial com um baile no Clube Social de Mirassol. Seria após a cerimônia da formatura, na mesma noite de sexta-feira. Já tinham combinado com o presidente do clube, reservada a data. A Orquestra Pan-Americana, do maestro Lalado, se prontificara a tocar gratuitamente, animando o baile. Tudo fora combinado ainda no primeiro semestre e os rapazes freqüentavam as aulas de dança nos meses de agosto e setembro.

O diretor, severo e inimigo declarado tanto da maçonaria quanto do carnaval e de bailes em geral, foi pessoalmente à classe do terceiro ano. Adentrando-se repentinamente, interrompendo a aula de contabilidade do professor Molina, foi curto e grosso:

— Não admito complô aqui na escola. Vocês pensam que podem fazer o que querem, mas estão enganados. Estou sabendo que tramaram um baile no mesmo dia da formatura. Não concordo e não permito. Se quiserem baile, não terão a cerimônia da entrega dos diplomas. Vocês escolhem.

Saiu como entrou. Sem “obrigado” nem “até logo”.

Foi água na fervura. Professor Molina, assustado, sem saber de nada, não teve condições de continuar a aula. Os alunos conversavam em voz alta, discutindo o dilema proposto pelo diretor.

— Gente, a cerimônia da entrega do diploma é mais importante. — Luci, a cabeça fria, sagaz e moderada, foi logo dando as coordenadas para os colegas, exaltados contra o diretor.

— Mas já está tudo combinado. — Ramiro queria o baile, a qualquer custo. — O Clube, a orquestra, tudo acertado. E até já aprendi a dançar...

— O padre manda aqui no colégio, mas lá fora não pode mandar na gente. — Luiz Carlos, que se considerava “perseguido” pelo diretor, era radical. — Vamos fazer o baile, quero ver quem vai proibir.

— É isso mesmo, gente! — Gladis levanta-se de sua carteira, entusiasmando-se. — A gente não tem nada que ficar debaixo da saia do padre.

O professor Molina, com voz calma e maneiras afáveis, interveio no assunto.

— Melhor vocês terem a cerimônia de diplomação, depois vocês pensam no baile.

— Aí não vai ter mais graça. Tem que ser na ocasião. — Gladis estava irredutível.

A opinião da maioria dos alunos prevaleceu. Melhor a cerimônia da entrega dos diplomas, marcada para ser realizada no Cine Metrópole, que o baile.

— Aliás, os convites da cerimônia já estão sendo impressos.

Foi difícil serenar os ânimos de Gladis, Luiz Carlos e Ramiro. Mas, afinal, aquiesceram.

A noite da formatura foi inesquecível para todos os onze alunos. Quando se adentraram no imenso salão, a platéia estava inteiramente tomada, e um zunzum percorreu o local.

Puxa vida! Esta é a noite mais linda da minha vida. — Deslumbrada, Clarisse transpira dentro da elegante saia-balão. As faces da loira estão rosadas, e os cabelos anelados esvoaçam quando passa sob os ventiladores.

Cláudio observa Clarisse: Ela está um arraso! Que pena que nosso namoro não continuou. Mas no ano que vem, vou tentar de novo. Quem sabe...?

Desconfortável com a camisa de colarinho e a gravata borboleta, Ramiro troca olhares com Gladis. Deslumbrante, devidamente maquiada, os cabelos arranjados no topo da cabeça acrescentam mais alguns centímetros à sua estatura. Seu vestido justo, de brilhante cetim salmão, confere-lhe um brilho hipnótico.Ela parece retribuir ao sorriso de Ramiro, mas a verdade é outra. — Esse Ramiro! Sempre querendo flertar com todas as garotas. Mas comigo, não, violão! Vou lhe dar corda, vou brincar com ele. Quero ver até onde ele tem coragem de chegar.

Todos se emocionam. Algumas alunas choram. Lurdinha fica animada ao ler o discurso da oradora da turma, tropeça nas palavras, e por fim, deixa o papel de lado e parte para o improviso...decorado, naturalmente. Depois, vem o patrono da turma, com um sermão de meia hora, e mais o discurso do diretor.

— Só temos elogios para essa turma. Moças e rapazes de respeito, dedicados...

Hipócrita! — Luiz Carlos fixa o olhar no diretor, pretendendo intimidá-lo. — Quem vê, pensa que ele sempre nos tratou com consideração. Deixa estar...

No final da festa, uma surpresa: O pai de Clarisse, comerciante forte na praça, convida os jovens para uma festinha em sua casa. Situado ali mesmo na Praça da Matriz, quase defronte ao cinema, o palacete estava engalanado para a festa: a fachada clara, iluminada pelas luzes dos três pavimentos, os portões abertos, acessando aos jardins e, em seguida, a entrada para a sala principal, transformada em um luxuoso salão de festas, para a ocasião.

Durante a festa, novos flertes, encontros, palavras dúbias são trocadas entre moças e rapazes. De uma possante eletrola, o coral de Ray Conniff e os metais de Glenn Miller estridulam noite a dentro. Animado e desinibido, Ramiro tira algumas colegas para dançar. Lurdinha não quer dançar, dá uma tremenda “tábua” em Ramiro, que logo convida Gladis.

— Humm! Você aprendeu rápido! — Gladis ironiza e opõe resistência ao aperto de Ramiro. — Mas vai devagar, queridinho...

Ramiro nada diz, apenas sente o perfume suave da moça, que abraça com enlevo. A festa ainda estava animada pela meia-noite, quando Ramiro, Luiz Carlos e Cláudio se encontram no canto da mesa das bebidas.

— Vamos embora? — Pergunta Ramiro, suado, a gravatinha borboleta torta no colarinho. — Pra mim, já chega de festinha de estudante.

— Tá cedo, cara. Ir embora pra onde? —

— Vou pra zona! Vocês querem ir?

— Espera mais um pouco, vamos juntos. — Cláudio ainda pensa em conversar com Clarisse.

Enquanto conversam, Ramiro nota que alguém está atrás deles, escondido pelas cortinas, ouvindo-os. Disfarçadamente, dá um jeito de descobrir e nota que Gladis os espionava. Que raiva! Agora ela sabe que nós vamos pra zona. Michou tudo aqui na festa.

— Tou indo. — Sem se despedir, avisa aos colegas e sai.

Ao chegar ao portão, escuta passos ligeiros que o acompanham.

— Peraí, cara, nós vamos juntos.

Foram os três para o meretrício. Entraram pelo Beco do Tobias e saíram na Rua Tiradentes, onde ficavam as casas das mulheres e os barzinhos “copo-sujo”. A rua se mostrava movimentada pelos clientes das putas e dos bares mal iluminados, sujos e decrépitos. Escolheram a casa da gorda Libânia, especialista em mulheres maduras, experientes.

Sentam-se a uma mesa, logo são assediados pelas prostitutas, que se acomodam nas suas pernas e pedem bebidas. Ramiro paga uma rodada de três cervejas. Ficam em bolinações e conversas fúteis, enquanto bebem. Os rapazes tomam devagar, mas as mulheres logo esvaziam os copos e as garrafas. Querem mais, porém os rapazes, sempre com pouco dinheiro, demoram nos pedidos.

Nenhum dos três revela a própria situação: estão com a grana curta, mal dá para as bebidas. Por isso, nenhum se anima a pedir mais bebidas. As putas logo percebem que os rapazes não estão a fim de gastar muito e, uma após outra, vão abandonando a mesa.

— Hoje num tou com vontade, vou pra casa. — Ramiro toma a iniciativa.

— Eu também vou embora. — Luiz Carlos acompanha Ramiro.

— Eu, idem. — Levantando-se, Cláudio tropeça na cadeira e quase cai.

— Tá de fogo, sô?

— Num foi nada.

Despedem-se na esquina, cada qual vai para uma direção.

Ramiro sobe a rua, na volta tem de passar pela praça, em direção à sua casa. No palacete de Clarisse, a festa já terminou. Na torre da igreja, o relógio marca três da madrugada. Surpreende-se ao encontrar a mãe de Gladis, que vem ao seu encontro.

— Ramiro, me ajuda a encontrar a Gladis. Até esta hora não chegou em casa.

— Estava na festa da Clarisse.

— Pois é, mas a festa já acabou faz mais de duas horas, e ela não apareceu em casa. — Torcendo nas mãos um lenço vermelho, o desespero estampado na face e expresso nos gestos, comove Ramiro. Vê-se na obrigação de ajudar dona Ernestina a encontrar a filha.

— Será que foi pra casa de alguma colega?

— Só se foi com a Lurdinha, elas são muito amigas.

Lurdinha mora por perto, a apenas três quarteirões. Mas Gladis não está lá. Doutor Ezequiel, pai de Lurdinha, se dispõe a sair também, à procura de Gladis. Saem os três. Ramiro organiza a busca.

— Vamos fazer o seguinte: Dona Ernestina e o Doutor vão procurando pelas casas das colegas na parte de cima da cidade, na Boa Vista e no Mirador. Eu vou aqui por baixo, pelo Brazinho e no Lava-pés.

Ramiro tem uma intuição. Lembra-se de Gladis ouvindo a conversa dos três, na festa, combinando a escapada para a zona. — Será que ela nos seguiu? Não, não é possível. Mas outro pensamento ocorre ao rapaz. A lembrança de uma certa conversa entre o grupo, quando “proseavam fiado” sobre coisas da vida, nessas ocasiões que revelam a índole e a personaliade das pessoas. Gladis mostrou, para escândalo das colegas, um interesse inusitado pelas prostitutas.

— Ainda vou conhecer uma casa dessas mulheres-da-vida. Ah, se vou!

Indo na direção da casa de Geralda, colega e amiga de todas, a confidente,a confiável, Ramiro passa, propositadamente, pela Rua Tiradentes. — Por via das dúvidas...Os bares já estão fechados, as casas de bordel estão cerrando as portas. Na esquina extrema, lá no final da rua, uma luz revela que o “Último Gole” ainda funciona: o bar do Batista, que é o último a fechar as portas, varando as madrugadas.

O rapaz não se assusta com o que vê, ao aproximar-se do antro: Gladis sentada a uma mesa, em companhia de dois homens de aspecto mais do que suspeito.

— Gladis? — Pergunta, num sussurro, como se não querendo a confirmação do que vê.

— Oi, Ramiro. Vem pra cá.

— Sua mãe tá que nem doida, te procurando na cidade inteira.

— Ah. Deixa pra lá. Vamos comemorar nossa formatura.

Aliviado, Ramiro verifica que Gladis está sóbria. Por momentos, imaginou-a bêbada, na companhia de dois marginais.

— Vamos embora. Tá muito tarde.

Dócil, a moça levanta-se e segue Ramiro. Na porta do bar, vira-se para os dois homens:

— Tiau, gente!

No caminho de volta, em direção à casa de Gladis, os dois estão sem jeito, não conversam. Passam pela praça central, o relógio da igreja soa quatro badaladas. Ramiro olha para a moça, uma onda de pena invade-lhe a alma. — Tão linda, e com uma conduta tão...tão..

— Olha, Gladis, não quero saber por que você estava lá no “Ultimo Gole” e...

— Tava seguindo vocês três.

— Tá. Tá bom. Não quero saber. Não vou falar nada pra sua mãe, onde você estava, nada. Você inventa pra ela uma desculpa qualquer. Mas você vai me prometer uma coisa.

— Prometer o quê?

— Você promete nunca mais voltar lá na Rua Tiradentes?

— Prometo.

Uma promessa que, Ramiro sabia, ela jamais cumpriria.

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Antonio Roque Gobbo

Belo Horizonte, 7 de dezembro de 2001.

CONTO # 131 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 08/04/2014
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