BACALHAU NO INFERNO

Subiam ao Corcovado pela Estrada do Silvestre.Íngreme e cheia de curvas, o carro protestava, o motor de dois tempos pipocava e soltava uma fumaça azulada que empestava o ar. Dorinha confiava na perícia do marido ao volante, mas a mãe, a gorda senhora acomodada no banco de trás, não escondia sua aflição. Era uma montanha de medo que se espalhava pelo exíguo cubículo do carro. As crianças não se deixavam impressionar pelos comentários da avó.Estavam fascinadas pela floresta cujas altas árvores transformavam a estrada num túnel verde.

— Cuidado, Camilo, não vá perder a direção! Olha só a altura em que já estamos! Se o carro despenca daqui...

— Ora, vovó (era assim que chamava a sogra, imitando os filhos), tou firme aqui na direção. Fique sossegada.

— Puxa, aqui é tão fresquinho. Nem parece que estamos no Rio. Lá embaixo tá um calor de rachar.

As crianças estão atentas. Admiração, um pouco de medo, sim, mas não querem perder um nada da viagem. Renata e Regina , caladas, não tiram os olhos da floresta. Apenas o irrequieto Armandinho faz perguntas e comentários próprios da curiosidade de um garoto de sete anos:

— Olha lá uma jaqueira. Se cai uma jaca em cima do carro, tamos na mer... — interrompe a frase a tempo de evitar o palavrão. O que não evita a censura.

— Armandinho, olha como fala!

A Vemaguete prossegue protestando. Voltas para a direita e para a esquerda, numa sucessão sem fim. O trânsito naquela hora da manhã é apenas no sentido de subida, nenhum veículo desce, o que tranqüiliza Camilo. A estrada é estreita, sem acostamento: de um lado erguem-se barrancos e paredões e pela direita a floresta encobre o precipício.

Este é o teste para a Vemaguete. Esta subida, com a carga total, vai mostrar a valentia e a potência do carrinho. — Camilo está satisfeito com a aquisição daquela perua, uma Vemaguete de 1965, muito bem conservada, com dois anos de uso, pouca quilometragem, quase nova. Havia apenas três meses que a adquirira.

Quando menos se espera, um carro grande, escuro, ultrapassa a Vemaguete. Mais potente, o Cadilac arranca num curto percurso de reta, ultrapassa a Vemaguete, e, encostando-se pela direita imediatamente, “fecha”-a. O Cadilac se agiganta bem em frente, assustando Camilo, que não tem condição sequer de frear. O Cadilac arrasta a Vemaguete, pára-choque traseiro enganchado no pára-lamas da sua perua.

Ouve-se o ruído estridente de metal sendo rasgado. O carro pára imediatamente à sua frente. Camilo dá uma guinada para a esquerda, a fim de evitar ser lançado no precipício à direita. O tranco separa os dois carros. Camilo é obrigado a frear, parando a alguns centímetros da traseira do Cadilac.

O motorista do carro desce: um homenzarrão de dois metros, metido num uniforme elegante, preto da cor do seu usuário e quepe de estilo militar. Algumas dragonas enfeitam os ombros do paletó. Não dirige nem um olhar a Camilo, vai direto verificar o dano da viatura que dirige. Camilo também desce.

— Cuidado com opretão, papai. — Adverte Armandinho.

— Cala a boca, menino! — Ordena a mãe, não escondendo sua preocupação. — Deixa que seu pai resolve tudo.

Camilo vê a placa: é diferente, toda escura. US Embassy 0011. Puta merda, é carro da embaixada. E dos gringos! — Ao mesmo tempo vê os estragos causados pela imperícia do chofer do luxuoso carro da embaixada. O pára-lama da Vemaguete está rasgado por uns trinta centímetros, onde o pára-choque do carro dianteiro raspou e enganchou. Nada de grave, apenas serviço de lataria e pintura. Mas ao ver o Cadilac, admira-se do estrago. O pára-choque, entortado para trás, foi arrancado pelo lado direito. A grande peça cromada descansa no asfalto, arranhada e entortada. O motorista está tentando recolocar a peça no lugar, inutilmente. O estrago no Cadilac fora muito maior do que o de sua Vemaguete. Como é que pode, um carrão desse tipo, desmontar-se assim, com tão pouca coisa!

— Vai precisar de um arame... — Camilo começa a dizer.

— O motorista não lhe dá atenção. Com esse cara não tem conversa, não. Dirige-se à cabine do carro, onde dois senhores permanecem sentados no banco traseiro, conversando animadamente em inglês. São os gringos. Vou ter que me virar com eles, o motorista não apita nada por aqui.

— Quem é o responsável pelo carro?

— Pardon, mister?

— Quero saber quem vai me pagar o prejuízo. O seu motorista causou o acidente, e quero ser reembolsado.

Foi difícil. Os dois gringos, americanos, na certa, não respondiam em português e Camilo não sabia nem falar “bom dia” em inglês. O motorista continuou lá atrás, tentando arrumar o pára-choque. Da “conversa” com os americanos, o máximo que Camilo obteve foi um cartão com o nome do embaixador, endereço e telefone da embaixada americana.

— Vamos embora. Esse pessoal aí não resolve nada, o carro não é deles, é da embaixada americana. — Entrando na Vemaguete, deu partida e manobrou para continuar a subida.

— Ué, mas ficou tudo assim, só na conversa? — A sogra estranhou o desfecho.

— Pois é, dona Carolina, vou ter de procurar a embaixada para acertar o conserto. Correr atrás do prejuízo.

O passeio no Cristo do Corcovado foi deslumbrante. Entre “ohs!” e “ahs”, Cidinha, a esposa, foi fotografando tudo. O incidente com o carro não atrapalhou, em nenhum momento, o passeio. Quando manobrava a Vemaguete para descer a estrada, eis que chega o Cadilac. Camilo observou: o pára-choque fora totalmente arrancado, provavelmente estaria no porta-malas, única maneira de os gringos prosseguirem no seu passeio.

Entusiasmado com a aquisição do veículo, Camilo não titubeara em aceitar o convite do tio Fernando para passar uns dias no Rio de Janeiro. Armara-se de muita coragem, deixou de lado o bom-senso e convidou a sogra, que aceitou no ato. A família — o próprio Camilo, a esposa Dorinha, mais os três filhos — viajaria com certo conforto. A presença ponderosa da sogra, noventa e oito quilos de carne e banha, complicou a viagem. Será que a Vemaguete agüenta? Camilo viu na viagem uma ocasião de testar o veículo. Nem por um momento passou por sua cabeça desistir.

No Rio, hospedaram-se no Hotel Barcelona, no Catete, bem próximo à residência do tio, uma pensão na Rua Cristina, subindo o morro de Santa Tereza. O tio os esperava no hotel, quando Camilo encostou o carro com cuidado para não raspar a banda branca dos pneus no meio-fio.

— Bem-vindo à Cidade Maravilhosa! —Recebeu-os na sua maneira gentil e alegre, com a qual cativava todo mundo. Alto e magro, cabelos loiros e tez clara, a figura do tio era a de um verdadeiro gentleman inglês. Abraços, beijos, a inevitável troca de informações sobre os parentes, casamentos, mortes, essas coisas.

Os passeios durante o dia eram por conta e risco de Camilo, já que Tio Fernando não conseguira licença do trabalho para acompanhá-los. O que era uma pena, já que o tio, morador no Rio há muito tempo, conhecia de cor e salteado todos os locais interessantes e os truques para tornar os passeios mais agradáveis e aproveitar melhor o tempo. Sem falar que o tio era adorado pelas crianças.

— Dou-lhes as indicações, vocês aproveitam. No fim-de-semana, vamos fazer alguns passeios juntos. Vou levar vocês num lugar especial e misterioso, no “Cabaré dos Bandidos”.

— Ai, cruzes, Fernando! — Dona Carolina estrilou de imediato. — Nesse lugar não vou de jeito nenhum. Nem deixarei que você leve as crianças.

O tio riu, pois o local não era nada do que ela estaria imaginando. Mas guardou silêncio e manteve o suspense.

Durante toda a semana, Camilo tentou em vão contatar a embaixada americana, a fim de resolver a pendência do abalroamento na estrada do Corcovado. Nada conseguiu. Os gringos são lisos, escapam de qualquer responsabilidade. Não vou sacrificar meus passeios para ficar correndo atrás desses safados. Melhor aproveitar o tempo passeando. Assim pensando, Camilo não deu maior importância, afinal o estrago não era tão grande.

No sábado pela manhã, último dia da estada da família no Rio, foram ao Aeroporto Santos Dumont.

— Aquele lá é o Concorde, avião supersônico...

— Tio, que é supersônico? — Renata quer detalhes técnicos da grande aeronave que mais parece uma gigantesca ave metálica de asas abertas ao sol.

— É que viaja em velocidade superior à velocidade do som. — Explica o tio.

Em seguida vem a indagação sobre a diferença entre aviões a jato e os de hélice. Sem ser técnico, o tio vai explicando à sua moda.

— E aquele fogo que sai atrás do avião? — Armandinho não entende bem, enfia uma pergunta atrás da outra.

Para simplificar e dar um tom de graça à explicação, o tio resume a informação:

— Aquele avião peida-fogo!

— Cruzes, Fernando! Isso são modos de falar com as crianças! — Irada, dona Carolina fuzila tio Fernando com olhares de reprovação, enquanto puxa Armandinho pelo braço.

— Esquece o que teu tio falou!

Camilo e Dorinha acharam graça na cena, e as crianças gostaram. Palavras daquele tipo jamais eram ditas na família. Ditas assim, sem cerimônia, em voz clara, pelo tio admirado por todos, era como que uma autorização para que fossem usadas sem censura. Armandinho, contrariando o conselho da avó, insistiu, usando com deleite as palavras do tio.

— Peida-fogo, tio? Mas como é que ele peida fogo?

O resto do passeio foi um prazer verbal de Armandinho.

— Sabe, o que mais gostei foi daquele avião que peida fogo...

Ou então, como que falando consigo mesmo:

— Como é que pode um avião peidar fogo?

E extrapolando a informação:

— Pai, a Vemaguete num peida fogo, né? Ela peida fumaça, né mesmo?

Na noite de sábado, foram jantar no “Cabaré dos Bandidos”. Todos estavam ansiosos para conhecer o que imaginavam ser um antro de marginais, covil de bandidos. Todos, menos Dona Carolina, que a principio se negava a ir, mas acabou sendo arrastada pelos netos.

— Vamos confiar no tio Fernando, mãe. Ele jamais nos levaria a um lugar perigoso.

— Sei não! Só confio, desconfiando. Com esse nome...

O restaurante era ali mesmo, no Catete, onde a rua desemboca no Largo do Machado. Uma casa antiga, de estreitas portas de madeira de duas folhas, e, ao lado das portas, duas janelas que se abriam para a rua. Na platibanda, letras descascadas nomeavam o local com simplicidade: CABARÉ DOS BANDIDOS.

— Puxa, tio, existe mesmo! — Renata estava desconfiada. — E a polícia não prende esses bandidos?

— Ara, Renata, não vê que os bandidos só vêm aqui para comer e beber? Eles se escondem noutros lugares. — Armandinho quer mostrar que já sabe alguns segredos da grande cidade.

Entram. O recinto é esquisito. Mesas e cadeiras de madeira, pintadas de azul forte. As paredes são escuras, há muito tempo esperam uma pintura. No fundo, um balcão-frigorífico separa o recinto e disfarça a porta que vai para a cozinha. Por trás do balcão, um homem calvo e de imenso bigode observa o movimento.

Quando a família entra, todas as mesas parecem estar ocupadas. E os ocupantes não têm, em absoluto, aparência de bandidos. Uma mesa só de homens que bebem chope em copos finos, as outras mesas com casais ou grupos de três pessoas. O proprietário vem recebê-los.

— Boas noites. Boa noite, dotoire Fernando. Que prazer tê-los cá conosco! Vamos entrando, tenho uma mesa especial para a distinta família.

Caminhando habilmente entre as mesas, leva-os para o fundo do salão. Pisam com cuidado na macia camada de serragem. Sobre uma mesa vaga, estendida com toalha verde, um cartão avisa “Reservado”. É nessa mesa que são acomodados.

— Seu Manoel é o proprietário— Avisa Tio Fernando.

E dirigindo-se ao português:

— Então, que temos para hoje?

— Hoje apresentamos uma especialidade do Minho: o bacalhau no inferno.

— Bacalhau no inferno? Cruzes, Santo Cristo! — Dona Carolina está a ponto de ir embora. Se eu soubesse ao menos como voltar pro hotel. Pensa e se conforma.

— Como é esse seu bacalhau no inferno? — Com bom humor, Dorinha quebra o mal-estar causado pelas palavras da mãe.

Pacientemente e com prazer, Seu Manoel explica do que se trata, e todos concordam que será uma boa pedida. Enquanto esperam, comentam sobre o “Cabaré dos Bandidos”. Camilo olha ao redor e só vê gente de aspecto tranqüilo, parece gente de bem.

— Pensei que iria encontrar aqui algum bandido famoso.

— O nome é só para dar cor local. Na verdade, aqui jamais parece bandido, mesmo porque bem defronte está uma delegacia de polícia. — Fernando sabe de tudo e vai explicando. — Aliás, grande parte da clientela aqui é do pessoal que trabalha na delegacia.

— Então devia ser o “Cabaré dos Mocinhos” — Sugere Renata.

— Aí não ia ter graça. — Retruca Armandinho. — E pra que serve essa serragem esparramada no chão?

— É a fim de evitar que os clientes que bebem demais e ficam tontos, escorreguem no piso, que é muito liso.

Foi servido o bacalhau no inferno. Uma grande travessa com pedaços desfiados de bacalhau em molho de tomate, coberto com fatias de ovos cozidos. Tão bonito quanto apetitoso, foi apreciado por todos. Dona Carolina transformou-se, ao saborear a fina iguaria, especialidade dos restaurantes do Minho, conforme explicara seu Manoel.

— Quero a receita. — Pediu a seu Manoel, que sorriu, sem nada dizer.

— Imagina, mãe, se ele vai dar a receita, o segredo de seu negócio. — Dorinha era prática e tenta policiar a mãe nas suas extravagâncias.

Qual não foi a surpresa, entretanto, quando, ao se despedirem, Seu Manoel entregou a Dona Carminha uma folha de papel com várias linhas manuscritas.

— Cá istá, formosa senhora, com o devido respeito. A receita do bacalhau no inferno.

Dona Carminha não se conteve. Abraçou o português com seus braços fortes, beijou-o na face e agradeceu.

— Muito obrigada, seu Manoel. Adorei seu Cabaré. Sempre que vier ao Rio, virei aqui e vou dar seu endereço para todos os meus conhecidos. Para que venham saborear essa delícia de bacalhau.

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A RECEITA DO BACALHAU NO INFERNO,

ESPECIALIDADE DO CABARÉ DOS BANDIDOS

Desfiar um quilo de bacalhau que passou a noite anterior na água, para dessalgar. Fritar o bacalhau em azeite de oliva bem quente. Preparo do molho: meio quilo de tomates cortados em rodelas finas, duas cebolas médias fatiadas, cinco dentes de alho, uma pitada de noz moscada, suco de quatro limões-da-china (também conhecido como limão capeta), cem gramas de alcaparras, sal e uma pitada de açúcar cristal e um copo d´água. Pimenta ao gosto. Pimentões em tiras finas. Azeitonas verdes e pretas. Seis ovos cozidos separadamente. Preparar o molho, cozinhando o pimentão, a cebola, tomates e os temperos no caldo de limão com o copo d´água e uma colher (de sopa) de azeite de oliva.

O molho deve ficar consistente. Colocar o bacalhau em camadas, cobrindo-o com o molho. Levar ao forno por cinco minutos. Retirar, espalhar com cuidado as rodelas de ovo cozido e as azeitonas. Servir com arroz branco e pão de gergelim.

Esta receita dá para servir quatro pessoas.

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ANTONIO ROQUE GOBBO –

Belo Horizonte, 24.janeiro.2002.

CONTO # 139 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 11/04/2014
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