Lembranças
Sebastião morava sozinho num casebre da margem da estrada que vai para o Barro Branco, uma localidade próxima à cidade de São Pedro de Alcântara (SC)
Arcado, cabelos brancos e pele tostada pelo sol da roça, baixinho, magro e com um olhar sagaz.
Um jeito todo diferente de ouvir e falar. Alias um falar agora cansado e ofegante.
Sua companhia era um cachorro.
Falavam os conhecidos, que Sebastião fora importante na vida e que tinha amigos fortes na política. Contavam suas histórias e que ele mesmo narrara e suas andanças pelo Brasil .
Alguns achavam que era um inspetor do governo, outros um mascate de uma grande firma.
Na verdade Sebastião era um solteirão mulherengo, viciado em jogo e por isto ficou na miséria.
Alguns fofoqueiros afirmavam que ele foi casado com uma bailarina francesa e que um dia ao regressar ao lar de uma de suas viagens, encontrou-a na cama com um amigo, matando os dois na hora.
Um velhote que trabalhava limpando a rua, que me disse que ele pertencerá a guarda Presidencial de Getúlio, e que o velho Sebastião tinha mais de meia dúzias de morte nas costas, inclusive de uma mulher que ele se apaixonara e ela não quisera nada com ele e por isso ele a matou a facadas e que o espírito dela ainda estava atormentando Sebastião em dias de lua cheia.E o maior testemunho era o cão, que ficava uivando até o amanhecer.
Fiz amizade com o velho Sebastião nos anos 80, por dez anos freqüentei sua casa, que se tornou parada obrigatória entre minha casa e o sítio que comprei a prestação e ate hoje ainda não acabei de paga-lo. (Acho que neste período só tive uma alegria, o dia que consegui compra-lo e com certeza só terei outra no dia que conseguir vende-lo.)
Por diversas vezes proseei com meu amigo, conversávamos por muito tempo, tomando café, com sua voz cansada, tossindo ou pigarreando ele falava:
Conheço um pouco de tudo Kia! conheço esta humanidade, este mundo já não serve pra mais nada!
Quando perguntava se ele tinha família, filhos, ele desconversava e me dizia:
-Não “carece amigo, este assunto me arredia”.
Todavia narrava suas histórias e os “causos” que viveu, e as que eu mas gostava, era das revoluções que havia participado.
Dizia-me que junto com seu pai acompanhou Gumercindo Saraiva pelas ribanceiras do Rio Grande do Sul; que junto com Pinheiro Machado e sua tropa percorreram todo o litoral brasileiro; que havia testemunhado ainda garoto, a entrada das forças armadas no Paraná e um fato que ele jamais esquecerá. o Coronel Flores da Cunha, amarrar o seu cavalo no obelisco na Avenida Rio Branco no Rio de Janeiro e o avanço das tropas em terras mineiras em 1930. Contava-me com detalhes sobre a “Coluna Prestes”.
Falava muito das belezas das baianas e da Bahia; das caatingas no Nordeste; da brancura das praias de Maceió e que em Belém fez promessa na procissão de Sírio de Nazaré.
Muitas vezes me descrevia o Amazonas, o imenso rio e os animais; mostrou-me um coro de cobra jibóia dizendo que havia matado no Mato Grosso com um tiro só.
Uma história que me contou e que achei mais interessante foi quando ele foi alvejado por um estivador em Santos e a bala bateu numa medalhinha de Nossa Senhora Aparecida que ele trazia no pescoço e que ela que lhe salvou a vida.
Quando começava a falar, Sebastião não ficava nos limites nacionais.
Visitou o Paraguai, México, Guatemala e Bolívia.
Afirmava-me categoricamente que conhecerá pessoalmente Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha, Juscelino Kuubitscheck e o famoso General Góes Monteiro...
Agora era um “Só”.
“Já estou “carquejo” estou só esperando “ela” chegar, mas estou com o ““ pensamento em paz”.
“Já corri muito, já campeei muito e passei por muitas invernadas, já penei que nem burro de carga, não gozei muito nesta vida, mas valeu a pena Kia,” “O diabo e este maldito (batia no peito) e esta bronquite que me mata aos poucos”.
-Porque o Senhor vive sozinho?
“Meu amigo, viver como vivi”... Tristezas e desilusão, levar porradas do destino, acabei aqui e neste que estás vendo.
“Amigos tive muitos, hoje não tenho mais, e nada mais para poder dar a um amigo. Sou muito pobre. Mas pra falar a verdade tenho um que esta comigo há dez anos”-indicou o cachorro que dormia a seus pés, que o olhava ternamente como reafirmando a sentença.
-Sei que gostas de versos, conhece um verso que fala dessa amizade?
Não respondi, não conhecia.
Ele calmamente olhando para o horizonte falou mansamente:
-Pela estrada da vida subi morros, desci ladeiras e afinal te digo: entre amigos encontrei cachorros e entre cachorros encontrei-te amigo!”“
Um domingo pela manhã cheguei ao casebre do Sebastião, estava fechado. O cachorro me reconheceu e veio ao meu encontro, estava muito magro e triste.
Soube mais tarde que o velho Sebastião havia morrido vitima de infarto.
O cachorro ficou comigo apenas cinco dias, Não quis comer absolutamente nada!
Levei seu corpo magro e o enterrei nos fundos do casebre.
Não sei se é impressão, ou fruto de minha imaginação, mas toda vez que passo frente ao local, parece que vejo um cachorro correndo pela capoeira!