OLHANDO PARA AS NUVENS

— Verdura! Verdura Fresca!

— Alface! Almeirão!

Parecem gêmeos não só pelo tamanho, como também pelas roupas idênticas e pelos gritos de seus pregões. Carregam cestas nos braços. Quatro pequenas cestas de bambu trançado, cheias de tenras verduras, consoante o tamanho dos garotos. O timbre de voz, o passo miúdo, os pés descalços, tudo igual.

— Menino, vem cá! — Assomando à janela, a gorda senhora grita, acenando, para os garotos.

— Cês têm cebolinha e salsa?

— Tem, sim senhora. — Ambos acedem ao chamado e aproximam-se do portão,enquanto a freguesa abre a porta, desce as escadas do alpendre, chegando perto dos vendedores de verduras. Um roupão de seda, amarrado à altura da cintura grossa, deixa entrever a camisola e o decote mal esconde os fartos seios.

— Quanto é o molho?

— Duzentos réis. — Josimar, o mais velho, adianta-se oferecendo o amarrado de temperos verdes. — A alface tá fresquinha. Quer um pé?

Ricardo, mais novo porém mais atrevido, finca os olhos no colo da mulher. Ela tem o dinheiro trocado na mão. Só quer mesmo os temperos. Quando eles se afastam, Josimar dispara no berreiro:

— Verdureiro! Almeirão! Cebolinha!

Ricardo chega perto do irmão:

— Cê viu os peitos dela? Que lasca!

— Cê é bobo! Nunca viu, não!

Pelas manhãs geralmente ensolaradas, quentes, os dois irmãos percorrem as ruas da cidade, indo em direção do centro, da Praça da Matriz, vendendo a produção da pequena horta cultivada pelo pai. Saem todos os dias, sendo que nas segundas e sextas-feiras não fazem o percurso das ruas. Nessas manhãs, vão diretamente ao Hotel Torino, onde deixam o conteúdo das cestas.

— Vê se presta atenção. Vamos, grita também!

Ricardo obedece à ordem de Josimar.Abre os pulmões, gritando para o alto.

— Oia a verdura fresca! Verdureiro!

Tendo começado o trajeto bem cedo, aí pelas nove horas estão de volta à casa, com os cestos vazios e os bolsos tilintando com moedas. Vão diretamente para os cadernos escolares, fazer os deveres de casa, cada dia mais difíceis.

A horta do seu Raimundo não é muito grande: uns vinte canteiros alinhados simetricamente, tabuleiros de terra negra, sempre cobertos pelo verde das platas, pois o plantio é intensivo. O trabalho na ferraria do Nicola Negromonte rende pouco e a venda de verduras reforça o orçamento da família.

Josimar e Ricardo não são, como muita gente pensa, irmãos gêmeos. Josimar tem dez anos. Meio atrasado no crescimento devido a problemas de saúde, iguala-se, na altura, a Ricardo, que é um ano mais novo.

A semelhança está mais no fato de que ambos são loiros e sardentos e vestem-se com roupas invariavelmente parecidas. A mãe, que costura as calças e camisas, aproveita para comprar os tecidos em quantidade maior.

— Fica mais em conta. Seu Calimério faz um precinho camarada. — Explica. As camisas são feitas de sacos de farinha de trigo, desmanchados nas costuras laterais. Cada saco vazio, comprado na padaria do Zé Granato, dá para fazer uma camisa.

As diferenças entre os irmãos aparecem quando se conhece a ambos. Josimar é quieto, afeito aos livros, dá a vida para ficar em casa, lendo. Ricardo é buliçoso, vive azucrinando o irmão. Ladino, não gosta de estudar. Passa grande parte do tempo com os amiguinhos da rua, brincando, soltando papagaio, jogando finca, rodando arco ou simplesmente conversando e discutindo. Ambos freqüentam o grupo escolar. Josimar, que todos chamam de Josí, está no terceiro ano e Ricardo (por apelido Cardim) freqüenta o segundo ano. Na escola são completamente diferentes. As professoras que o digam.

— Ricardo, senta no seu lugar. Fica quieto!

Ele quer chamar a atenção de Maria Cecília. Estão ainda no primeiro semestre do ano letivo, mas a professora conhece seus alunos e sabe da fama de Ricardo.

Maria Cecília é aluna nova na classe do segundo ano. Ricardo ficou deslumbrado com a nova colega desde o primeiro dia de aula. Muito clara, os cabelos e olhos pretíssimos e a voz suave despertaram a atenção do garoto.

— Cê precisa ver que menina bonita! — Falou para o irmão mais velho.

— Cê é bobo, Cardim. Não vê que ela é rica, morando naquele palacete. Nunca que ela vai olhar procê.

Na primeira semana de aulas Ricardo já sabia quase tudo a respeito de Maria Cecília. Mora na Praça da Matriz, no palacete com o imenso jardim na frente e os grandes portões de grades. Na garagem está o carro do pai, um Chevrolet novo, azul e branco, os pára-choques cromados faiscantes e pneus de faixa branca.

— Ela veio de mudança. O pai tem fazenda em Goiás.

Ricardo não presta atenção às aulas, vira-se constantemente para trás, a qualquer pretexto, para lançar olhares a Maria Cecília. Deixa o lápis cair, joga a borracha no chão ou implica com o colega da carteira de trás. Não foi à-toa que a professora o colocou na primeira carteira, a fim de vigiá-lo de perto. Nos períodos do recreio, tenta aproximar-se da menina. Inutilmente: ela está sempre rodeada pelas amigas, alegre e comunicativa que é. Para piorar a situação, ela é estudiosa e tem as melhores notas na classe. Enquanto Ricardo...quase toma bomba no final do ano.

Por insistência de Ricardo, passam todos os dias defronte à casa de Maria Cecília, oferecendo verduras. Ricardo nunca a viu na casa.

— Vamos voltar pela rua do cinema —

— Não, vamos passar de novo pela praça. Lá a gente acaba vendendo tudo.

De novo, passam gritando em frente ao palacete. Por sorte, a empregada grita da janela:

— Verdureiro! Deixa ver a alface.

Nas poucas vezes em que são atendidos, é a empregada, uma velha centenária (pelas rugas e pelo jeito de andar e falar) que chega até o portão. Os últimos pés de alface e alguns tomates são vendidos. Mas de Maria Cecília, nem sombra.

— Pergunta pra empregada se a Maria Cecília já acordou. — cochicha Josimar.

— Eu não!

Voltam rapidinhos para casa, para os deveres de escola e para as tarefas de antes do almoço.

Ricardo passou o ano todo nessa lenga-lenga. Nunca falou com Maria Cecília, mas sempre o coração disparando sempre que a vê. O final do ano chegou com as provas.

— Se você levar bomba, Cardo, vai direto pra oficina do Zé Caetano. Vai aprender ofício de marceneiro. — O pai avisou. Josimar passou com folga e Ricardo passou de raspão.

Nas férias, os meninos continuam vendendo verdura. Daí a uma semana após as provas, notam que o palacete está todo fechado. A garagem vazia.

Passam diariamente, por mais de duas semanas, em frente ao sobrado. Sempre a mesma coisa: tudo fechado, nenhum sinal de vida. .

— Cadê o pessoal do sobradinho? — Josimar pergunta ao empregado do hotel, quando entrega as verduras.

— Ah! O coronel Tenório? Mudou.

Ricardo levou um susto. Os olhos arregalados, arrasado com a informação, não acredita no que ouve.

— MUDOU? Mas, e a família? E aquela menina?

— É, não gostaram muito daqui de São Roque da Serra. Mudou com a família para Ribeirão Preto. Até já vendeu o palacete.

Antonio Roque Gobbo –

12 de outubro de 2002-

Conto # 183 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/04/2014
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