191 - ONDA DE CALOR

— Puxa vida, o verão ainda não chegou e estamos com esse calorão dos diabos.

— Olha o palavrão, Roberto!

— Mas não tenho razão, Olga? Isso está mais parecendo o inferno.

— É verdade. Na televisão a moça do tempo diz que calor assim, só o de 1967, há trinta e cinco anos atrás.

Roberto e Olga estão armando a árvore de Natal. Já é uma tradição a arrumação da sala e do alpendre, no dia 8 de dezembro, com os enfeites do Natal. Ele sua em bicas e logo está cansado. Ela, mais animada, prossegue colocando festões, estendendo fios de minúsculas lâmpadas e amarrando bolas brilhantes e enfeites diversos.

— Qual o quê! Este verão está me lembrando mais o de ’58, quando nos casamos. Por coincidência, foi no dia 8 de dezembro que enfrentamos aquele temporal. Cê se lembra?

— Puxa, se me lembro. Aquilo sim é que foi calor. — Olga imobiliza a mão, por instantes, e olhando para o marido, acrescenta uma nota de nostalgia ao seu comentário. — A gente estava em S. Paulo, era nossa lua-de-mel...

— Má que calore! Ma que calore! — Andando entre as mesas do restaurante do Hotel Viena, o garçon, que não era italiano, mantinha um sotaque de habitante do Braz. Acercando-se à mesa dos recém-casados, reforçava ainda mais a sua expressão de desagrado ante a onda de calor que assolava S. Paulo.

— Se este calore continua, vamo ter tempestade braba. Aceitam mais macarrone?

Não, o casal não queria mais nada. Era um feriado, dia 8 de dezembro. Estavam ansiosos para terminarem o almoço e partirem para uma visita aos parentes de Roberto.

— Grazie tante! — Puxando a cadeira para Olga se levantar, agradece a gorjeta que Roberto deixa sobre mesa. — Tenham uma boa tarde. Ah! Se forem sair, não se esqueçam do guarda-chuva.

Não, eles não se esqueceram do guarda chuva. Esqueceram-se de algo muito mais importante.

A luta de mel tinha sido uma verdadeira maratona. Roberto mostrara-se extravagante e fizera questão de viajar para Foz do Iguaçu, depois para o Rio de Janeiro e terminar a viagem da lua-de-mel em S. Paulo.

— Ara, Roberto, pra que parar em S. Paulo? Estou cansada, já estamos viajando há mais de quinze dias!

— Vamos visitar o Pedrinho meu primo. Ele e a mulher sempre foram muito gentis comigo, quando eu trabalhei em S. Paulo. Faço questão.

Tomaram o bonde para Vila Prudente, onde morava o primo. Poucos passageiros, poucas paradas e dentro de trinta minutos chegaram ao destino. Olga trajava um vestido leve, apropriado para a tarde quentíssima. Muito rodado, exigia cuidados especiais quando alguma aragem ou vento moleque ameaçava levantar a saia.

— Puxa, está numa elegância! Mas cuidado com o vento.

— Que vento, Roberto? O ar tá tão parado. E pra esse calorão, é a roupa mais fresca que tenho.

A visita transcorreu em amenidades. O primo e Mariana, a esposa, eram gente fina, muito cordiais. A tarde de feriado foi tranqüila, apesar do calor.Conversas, reminiscências dos tempos de garoto, quando Roberto e Pedrinho vadiaram juntos na cidade pequena do interior. Por insistência de Mariana, ficaram para o jantar. E em seguida, organizaram uma partida de buraco. Quando deram de si, eram quase nove horas.

— Puxa, temos quer ir.

— Ainda é cedo!

— Que nada! A conversa tava tão boa, que nem vimos o tempo passar.

Despedidas, abraços, promessas de novas visitas.

— Venha nos visitar em São Roque. Nossa casa fica perto do centro. Aqui está o endereço — Roberto passa o cartão de visitas ao primo.

Saíram para tomar a condução de volta. A onda de calor que se abatera sobre a cidade permanecia, tornando a noite abafada, sem uma brisa ou aragem. Roberto suava e Olga sentia a roupa pregando ao corpo, num desconforto total.

— Vamos tomar o ônibus. Agora de noite é mais rápido.

Enquanto esperavam o ônibus para a volta ao centro da cidade, começam a cair os primeiros pingos de chuva. Pesadas gotas d’água batendo fortemente sobre o guarda-chuvas. Há mais de meia hora, relâmpagos e trovões ameaçavam com o temporal. O calor cada vez mais forte. A camisa de Roberto colava ao corpo, marcas de suor sob as axilas.

— Ainda bem que o ônibus chegou logo. — Comentário de Olga, ao entrarem no ônibus. — Foi bom você ter trazido o guarda-chuvas.

— Saiba que você se casou com um homem prevenido. Um homem de duplo valor.

— Como assim?

— Cê num sabe que um homem prevenido vale por dois?

— Ara, Roberto, deixa de ser bobo!

O percurso por ônibus foi de curta duração. Enquanto estavam no ônibus, o temporal desabou sobre a metrópole. Raio e relâmpagos, trovões ensurdecedores e chuva, muita chuva, despencava dos céus, numa verdadeira tormenta de verão tropical. Ao chegarem ao centro, o ônibus parou no ponto terminal da Praça Álvares de Azevedo.

— Puxa, Roberto, como vamos fazer? Daqui até o Hotel Viena são alguns quarteirões. Não vamos poder ir a pé. Mesmo debaixo do guarda-chuvas.

— Cê tem razão, Olga. Mas temos de descer do ônibus. Não podemos ficar aqui a noite inteira.

Desceram. A chuva forte varria as calçadas, a enxurrada subia pelos meio-fios da calçada. Assim que Roberto abriu o guarda-chuvas, um pé de vento virou as barbatanas, inutilizando-o. Roberto o largou ali mesmo. O vestido leve de Olga cola-se ao seu corpo, revelando as formas femininas. Roberto, por um momento, tem a visão fugaz da mulher, iluminada por um relâmpago. Logo, uma escuridão cai sobre tudo.

— Chiiii. Acabou a luz. Olga, me dê a mão. Corre comigo.

— Pra onde vamos?

— Vamos pegar aquele táxi ali na esquina.

Correram em direção do ponto de táxi, onde um carro solitário permanecia encostado, os faroletes acesos. Roberto abriu a porta traseira o e empurrou Olga para dentro do veículo. Entrou em seguida e fechou a porta. Estavam ensopados.

— Toca pro Hotel Viena. — Falou ao motorista.

O chofer, pacatamente, virou-se para traz e puxando uma tragada do cigarro, respondeu:

— Com esse tempo, doutor, num vou pra lugar nenhum, não senhor.

— Mas, pelo amor de Deus, temos de chegar ao nosso hotel.

— Podem esperar sentados. Só saio daqui quando o temporal amainar.

A cidade estava mergulhada num blecaute total. Só se viam as luzes dos faróis de poucos carros e ônibus que se aventuravam a percorrer as ruas debaixo do temporal assustador. Roberto e Olga esperam. Tentam entabular conversa com o motorista, mas o homem é caladão. Parece não gostar da presença dos passageiros em seu carro.

Enfim após uma espera de mais de meia hora, a tormenta foi diminuindo. As luzes voltaram e a cidade se iluminou. A corrida de táxi até o hotel foi curta, pouco rendeu ao motorista. Para compensar, Roberto deu-lhe uma gorjeta boa.

Era quase meia-noite quando se adentraram pelo Hotel. No saguão o encarregado da noite cochilava e nem se deu conta da chegada dos hóspedes. Tomaram o elevador e chegaram até o terceiro andar.

— Até que enfim! — Olga suspirou. — Estou louca para vestir uma roupa seca, deitar e dormir.

— Puxa, nunca vi um toró como este! Pudera! Com aquele calor da tarde! E lá se foi nosso guarda-chuvas. — Roberto se adiantou para abrir a porta do apartamento. Ao acender a luz, surpreendeu-se com o que viu.

— Hiiiii, que coisa! A janela ficou aberta!

— O quarto está inundado, Roberto!

As cortinas pendiam, encharcadas. O assoalho era uma poça d’água, que vazava para o corredor. Olga entra no quarto, pisando na lâmina de água.

— Cuidado! Seus sapatos...!

— Não faz mal, já estão molhados. Chiiii, Roberto, até a cama está molhada!

Ele entra. Metade da grande cima de casal está molhada, pois a chuva, acompanhada de ventos, atingira metade do aposento.

— Vou pedir ao porteiro para mandar alguém vir enxugar o quarto.

Roberto desce para pedir ajuda. Olga tira a colcha e os lençóis. A colcha grossa impediu que o colchão também se molhasse. Espreme as faldas das cortinas. Roberto chega de volta, trazendo balde, esfregão, rodo e alguns panos velhos.

— Que é isso, Roberto? Cadê o pessoal da limpeza?

— O porteiro disse que a essa hora não tem mais ninguém da limpeza. E que ele não pode abandonar a portaria para fazer o serviço. Me arranjou esse material. Nós é que vamos ter de limpar o quarto.

— Que beleza! Isso tá me parecendo mais um pesadelo do que uma lua-de-mel!

Sem alternativa, os dois, pacientemente, enxugam toda a água do quarto. Quando terminaram passava da uma da madrugada.

— E agora, como vamos dormir? O colchão tá seco, mas os lençóis e a colcha estão molhados. — Olga já está muito cansada e aborrecida. Apesar do temporal, o calor continua intenso.

— Fazemos o seguinte: estendemos as cobertas sobre o colchão e dormimos sem lençol.

— Roberto, cê tá doido? Com esse calor e vamos dormir sobre cobertores?

Olga acorda de seu devaneio. Dependura mais uma bola no galho da árvore (artificial, feita na China).Faz as contas: a memória levou-a através dos tempos, para outro dia oito de dezembro, há quarenta e dois anos atrás. Rememorando os detalhes daquela tarde e noite, emite um suspiro.

— Aquela tarde foi memorável. — Ele também se lembrava daquela noite de calor. Como que continuando o devaneio da esposa, acrescenta: — O final daquela noite foi além da imaginação.

— Além de limpar o quarto, tivemos de dormir sobre o colchão, sem nada para nos cobrir. — Olga sorri.

Piscando maliciosamente para Olga, Roberto pergunta, reafirmando uma velha impressão:

— Mas foi bom, não foi?

ANTONIO ROQUE GOBBO

= Belo Horizonte, 9 de dezembro de 2002 =

CONTO # 191 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 02/05/2014
Reeditado em 08/05/2014
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