MEU PAI SOBRE A MESA

Vejo o corpo frio de meu pai sobre a mesa. A noite está quente. As pessoas contam histórias e riem. Jogam truco. E riem.

Eu, não triste. Nem inconsolável. Um sentimento de alívio me dói no peito. Nunca mais meu pai vai beber. Nunca mais vai fugir de casa e passar cinco, seis dias, como dizia a minha mãe, enfurnado num puteiro. Nunca mais.

A morte é como uma prisão. Incomunicável, meu pai não vai mais para lugar nenhum.

Minha mãe ali, ao lado do caixão, numa fidelidade canina. Chora. Talvez pelo que a vida poderia ter sido e não foi, por culpa desse que agora parte. Quantos sonhos morreram no fundo de um copo de cachaça? Quantos quilos de roupa minha mãe teve de lavar? Quantas noites sem dormir?

Agora meu pai dorme o sono eterno.

E na rua persiste o movimento dos bêbados, que comemoram e rememoram as aventuras de meu pai.

Quanto a mim, o que tenho feito de minha vida?

Minha mãe me disse para parar de beber e largar a Vanessa, pois ela vai me levar para a cova. Mas Vanessa só me leva para a alcova, mãe! Só isso.

Penso que posso dormir. Mas meu pai é quem dorme. Se, com justiça, Deus é quem sabe.

Lá fora, os bêbados celebram o fim de um velho elefante.

Beto Carrasco
Enviado por Beto Carrasco em 08/05/2007
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