203 - O CANTOR DA MADRUGADA

O sonho de Astolfo estava concretizado: o rádio de ondas longas, médias e curtas fora solenemente ligado pelo Zé Eletricista e emitia os sons pela casa toda. Ficou embevecido, ouvindo a música que fluía pelo alto-falante, esquecendo-se de tudo e de todos. Foi preciso a mulher Etelvina trazê-lo de volta à realidade:

— Olha, Astolfo, o eletricista tá esperando...

— Ah! Já ia me esquecendo.

Feito o pagamento e assegurando-se de que o rádio estava mesmo funcionando em todas as faixas, Astolfo desligou o aparelho, com a promessa solene à esposa e à criançada, reunidos ao redor:

— Hoje de noite vamos ouvir a Hora do Brasil.

Já fazia algum tempo que tinha vontade de comprar um rádio. Novo, nem pensar. Mas ficou de olho no aparelho do Nicola Chianti, que, embora usado, ainda era bom. Procurou saber a respeito. Seu amigo Zé Eletricista, que entendia de tudo sobre aparelhos e ligações elétricas, era o conselheiro no assunto.

— A marca é boa. Zenite importado, está quase novo. Cê mesmo já ouviu diversas vezes. Pode comprar sem susto.

Quando começou a entabular o negócio com Seu Nicola, tinha algum dinheirinho guardado, que lhe permitiu entrar na conversa. O velho italiano falou em comprar um aparelho novo, e logo procurou saber o que iria fazer o atual. O preço e as condições do pagamento foram acertados entre os dois. Um tanto de entrada, mais alguns pagamentos parcelados, e eis Astolfo dono de um dos poucos rádios existentes na pequena cidade de São Roque da Serra, nos idos de ‘44.

Astolfo era o único encerador de assoalhos na cidade. Competente e trabalhador, estava sempre sobrecarregado de serviços. Passava o dia inteiro fora de casa, e chegava à noite cansado, pois trabalhava sozinho em todas as etapas do serviço: raspar as tábuas ou tacos, lixar, passar a cera, esfregar com panos e estopa, até que o piso ficasse como um espelho. Tudo manualmente. Queixava-se de dores nas costas, pois ficava o dia inteiro agachado, ou de cócoras ou ainda ajoelhado, para atingir a perfeição de seu trabalho.

Em casa, era calado e dava pouca atenção à família. Costumava sair à noite para ouvir notícias no bar do italiano, que mantinha o rádio ligado como um chamariz para manter o movimento do estabelecimento. As horas que passava sentado num canto, ouvindo a “Hora do Brasil” e em seguida, outros programas de notícias, eram as melhores de seu dia. Descansava e ao mesmo tempo ficava sabendo do que estava acontecendo pelo mundo.

— Quando puder, compro um aparelho desse.

— Cê é bobo, Astolfo. Custa uma nota e gasta muita eletricidade.

— Num faz mal. Ainda vou ter um.

Comprado o aparelho, combinou com Zé Eletricista a limpeza e a instalação em sua casa. Habilidoso, fez uma prateleira de madeira que parafusou na parede da sala de visitas, a uma altura em que só ele ou a mulher alcançavam, para ligar e desligar. Às crianças era dado o prazer de apenas ver as luzes de diversas cores que iluminavam o mostrador: uma verde na faixa superior, de ondas curtas, a amarela, na faixa do centro, de ondas médias e uma violeta na parte inferior, iluminando os números da faixa de ondas longas.

Ele já sabia manipular os botões e encontrar as estações preferidas. Ensinou à Etelvina, que, no começo, nem queria aprender. Mas quando descobriu que podia ouvir músicas, gostou e logo descobriu os horários e as estações que irradiavam as músicas de sua preferência. Agradavam-lhe especialmente os programas de músicas cantadas por Francisco Alves, Carlos Galhardo, Ataulfo Alves ou Dalva de Oliveira. Ouvia os programas durante o dia, enquanto limpava a casa, fazia a comida ou cuidava das crianças. As horas que dedicava a passar a roupa (tarefa das mais chatas, com o ferro de brasa esquentando as mãos) corriam rápidas, quando o rádio estava ligado nos programas musicais.

A conta da luz aumentou um pouco. Astolfo falou com a mulher:

— É preciso economizar. Vê se não fica o dia inteiro ouvindo o rádio.

Embirrou com os programas musicais, mas nem pensou em diminuir o tempo em que, todas as noites, permanecia de ouvido colado no aparelho, ouvindo notícias e mais notícias. Começava com a Hora do Brasil, continuava com outros noticiários, o Repórter Esso e só ia deitar depois das nove, quando terminavam seus programas favoritos. Aos domingos, não tinha muito que ouvir, a programação era mais de entretenimento.

— Puxa vida, esse Francisco Alves canta sempre as mesmas músicas. Não sei como você agüenta.

Etelvina agora não dispensava o programa dominical do meio-dia da Rádio Nacional. Embevecida, até se esquecia de comer: o programa coincidia com a hora do almoço ajantarado. Não dispensava sequer a abertura do programa, quando a locutora Lúcia Helena anunciava:

— Quando os ponteiros do relógio se encontram às doze horas, os ouvintes da Rádio Nacional se encontram com Francisco Alves – O REI DA VOZ!

O marido pegou birra do programa. E de todos os cantores e cantoras do rádio. Enquanto a mulher ouvia suas músicas, ele ia para o quintal ou saía para a rua, a conversar com algum amigo ou transeunte que passasse à porta da casa.

Ficou implicado também com Laércio, rapaz boêmio, residente no alto dos Coqueiros. O moço era trabalhador, tinha um açougue, mas descia todas as noites para a zona, onde passava algumas horas com as mulheres da vida e tomava suas cervejinhas. Também gostava de cantar no barzinho da Joana Paquinha, que ficava espremido entre as casas de Maria Tirolesa e Cherrí Gení. Tudo por prazer, não ganhava nada, apenas para passar o tempo entre os amigos.

A chateação para Astolfo era que Laércio subia tarde para sua casa: lá pelas duas da manhã, e vinha sempre meio alegre, cantando com sua potente voz. As músicas que cantava eram as mais em moda no momento, mas quando passavam pela calçada, ao lado da janela do quarto onde o casal dormia, era um aborrecimento para o encerador. O casal acordava, ele irritado com o vozeirão, ela enlevada pelas melodias que ouvia no rádio, as suas músicas prediletas. Não era uma serenata, o rapaz passava caminhando e não se detinha em nenhuma janela.

Ah! Que bom seria se ele fizesse uma serenata! — Etelvina sonhava ao som das músicas românticas que fluíam pela madrugada.

Laércio imitava Francisco Alves, quando cantava:

Na carícia de um beijo, que ficou no desejo

Boa noite, meu grande amor.

Ela tinha verdadeiros frissons, arrepiava-se toda. O marido resmungava, levantava-se, ia à cozinha e ao banheiro, e voltava de mau humor. Não tinha coragem, entretanto, de abrir a janela e mandar o cantor parar com aquele lacuteio na madrugada. Ficava mais aborrecido ainda quando notava a mulher enlevada com a cantoria.

— Esse cara num tem o que fazer? E vá cantar mal assim nos quintos dos infernos! — Sem coragem de interpelar o cantor, sentiu uma ponta de ciúmes lhe cutucar o coração, será que Etelvina tá gostando desse cara?

E, por uma associação simplória, concluía: Eu sabia que essa história dela ficar ouvindo as músicas no rádio ia acabar assim. Apaixonada por um açougueiro, cantor da madrugada! Vou acabar com essa história de ouvir músicas no rádio.

Uma noite de verão o tempo fechou pelas onze da noite, raios e relâmpagos prenunciaram o temporal que desabou na madrugada. Exatamente na hora em que o cantor passava.

— Lá vem o desgraçado. Nem a chuva impede o bandido de suas cantorias. — Acordado com o barulho do temporal, levantou-se e entreabriu a janela. Uma lufada de vento agitou a cortina fina.

— Fecha a janela Astolfo. — Acordada com a friagem, a mulher revira-se na cama.

Astolfo vê o vulto de Laércio, que passa, a cantoria sobrepondo-se ao barulho do temporal. Encorajado pelo zunir do vento e pelo troar da tormenta, Astolfo grita na direção do cantor:

— Vá cantar em outra freguesia! Deixa a gente dormir sossegado!

— Astolfo! — A mulher levanta-se em um supetão, fecha a janela e zanga-se com o marido. — Cê num sabe se esse cara é bravo, pode vir tirar satisfações.

— Qual o quê! Com essa trovoada, acho que ele nem ouviu.

Não se sabe se Laércio ouviu ou não o destampatório de Astolfo. O certo é que, desde aquela noite escabrosa, nunca mais Etelvina foi acordada pela voz do cantor da madrugada.

Antonio Roque Gobbo =

Belo Horizonte, 22 de janeiro de 2003

Conto # 203 da SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 07/05/2014
Reeditado em 07/05/2014
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