Aula Inaugural

Faltavam dez minutos para as duas horas da tarde. A maior parte dos calouros que vieram para a aula inaugural já estava na sala.. Quietos, pouco a vontade, não conhecendo quem estava a seu lado. Alguns poucos que já se conheciam conversavam baixo. O tempo passa e chega a hora da aula, mas os veteranos avisam que o professor vai demorar um pouco, pois acabara de chegar de viagem e estava vindo do aeroporto.

Quando o professor entrou, de terno e gravata, com um assistente ridiculamente puxa-saco, de óculos garrafais, todos exibiam uma cara de preocupação. Logo depois, ele ia começando um discurso lento e complexo enquanto seu assistente, que estava vestido praticamente igual a ele ia descarregando uma mala inteira de livros pesados e grossos sobre a mesa de mogno antiga e grande ao centro da elevação reservada ao professor. Um aluno ri.

- Onde está a graça? O senhor sabe quantos compromissos importantíssimos tive que desmarcar para estar aqui?

- Desculpe professor – disse o aluno, provavelmente querendo que o chão se abrisse naquela hora.

- Senhores – recomeçou o professor imponente. – Agora que vocês farão parte do seleto grupo de sábios do país, e uma coisa que se faz extremamente fundamental é o respeito e a aceitação da autoridade dos mestres!

Ele ficou ainda uns dez minutos no mesmo assunto. Quando, finalmente, decidiu-se por retomar seu discurso, foi interrompido outra vez.

- Posso ir ao banheiro, professor? – era a terceira vez que a mesma garota fazia a mesma indagação. – Será que eu vou perder alguma coisa, é rapidinho...

- Senhorita, eu não sou sua mãe para lhe dizer o que fazer ou não! - o respeitável professor havia se irritado em demasia. – Faça o que quiser. Quanto ao que vai perder, é óbvio, a senhorita não acha?

- Professor, eu só...

- A minha aula! O que pode ser pior que perder um segundo sequer da MINHA AULA? Jovens impetuosos, os senhores têm a noção de quantos anos eu levei para ter o título de doutor? – e voltando-se para a estudante. –Se a senhorita quer abdicar do privilégio de assisti-la, fique a vontade!

Não havia uma alma sequer que não estivesse se perguntando se estava realmente numa faculdade ou num sanatório, cercada de loucos... O assistente, conforme tinha ordenado o professor, apagava toda a enorme lousa com uma satisfação inexplicável em submeter-se às ordens mais bizarras do senhor de terno.

“Senhores, escutem e aprendam: filósofos não riem, filósofos não contam piadas! Por quê? Eu vou lhes responder porque! O riso é a diferença entre o entendimento tardio e a vinda da razão! Logo, filósofos não dão risada, pois colocam sempre a razão acima de tudo!”

Assim, o senhor de terno, com seu assistente a tira-colo, continuava a desfiar um verdadeiro rosário de coisas contraditórias e sem sentido. Não houve um instante no qual eu risse, não por acreditar no que ele nos falava do púlpito, mas por não saber se aquilo era mesmo uma sala de aula e ele um professor. Que pérolas... Dava para fazer várias pessoas rirem do que ele dizia...

“... Outra coisa, senhores! Cultivem um ar de distração. Quando alguém lhes cumprimentar, olhem para cima e façam aquela cara de alienação. A pessoa pode levar para o lado pessoal, achar que é com ela. Porém, nós temos que estar sempre refletindo sobre tudo, e certas coisas nos atrapalham muito. Não podemos ceder ao corriqueiro, não podemos nos dar ao luxo de descansar um minuto que seja!”

Eu estava, para falar a verdade, morrendo de medo da figura tresloucada que pregava seus ensinamentos desconexos com uma postura apocalíptica. Nessa altura, talvez todos nós, os incautos calouros, já não sabíamos se começaríamos o curso os se fugiríamos daquela faculdade para nunca mais voltar assim que aquilo terminasse.

Antes de tudo acabar, ele ainda desfeiteou uma aluna que veio de escola pública, dizendo “os senhores vão me desculpar, mas os que vêm de escola pública podem até passar no vestibular, mas não possuem o nível cultural para estar entre nós!”, e um outro calouro que não entendeu o que ele dizia com um “o senhor passou mesmo no vestibular ou está aqui de favor? O exame tem que selecionar melhor os alunos que entram na USP! Como o nível caiu por aqui, que desgraça!” Faltavam uns dez minutos para terminar a aula. Eu não via a hora de sumir dali.

- Eu não acredito! O senhor aqui de novo! – disse desesperado um veterano do Centro Acadêmico de Filosofia. – Já é a quarta vez que o senhor vem aqui quando não tem aula pra dar e rouba os alunos do outro professor! Ele está velho, quase gagá, pode ser a última aula que ele dê. Como o senhor faz uma coisa dessas assim? Só tem uns três calouros lá, ele ta totalmente desconcertado, coitado! – O veterano parecia preocupadíssimo.

- Eu vim, venho e virei enquanto eu puder! Um filósofo tem que procurar sempre o público para ouvi-lo! O matusalém na outra sala que se dane!

Meu Deus, além de ter aulas com um professor maluco, nós ainda tínhamos entrado na aula errada! Não, isso não podia ser verdade! Que belo começo! Em que sanatório nós tínhamos nos metido... Com algumas diferenças, claro, era essa a essência do pensamento de todos nós, suponho.

Uma confusão de alunos tentando se retirar da sala e o murmúrio crescente fizeram com que chegasse a hora da verdade.

- Senhores – ponderou calmamente o senhor de terno. – Por favor, senhores, acalmem-se! Isso tudo foi uma brincadeira para descontrair, não passou de uma cena armada por nós para recepcioná-los com bom humor. Esse cara aqui (apontando para o assistente ao canto), bem puxa-saco ele, né? Bom, é da turma de Artes Cênicas da UNICAMP. Essa adorável garota também é atriz (a garota que foi xingada por ter vindo de uma escola pública) e esse é o meu filho (o cara que supostamente estaria ali de favor). – O professor falou em tom agradável, quase cômico.

Pode-se ouvir um suspiro de alívio por parte de todos os calouros. Eu dei risada de mim mesma o resto do dia por ter anotado parte do que ele falava. Do meu lado esteve sentado um bonitinho que não parou de segurar o riso durante a aula inteira. Só depois que tudo foi esclarecido, deduzi que ele não era calouro coisa nenhuma, mas estava lá pra fazer volume e sabia do teatro todo.

Foi um mico, para não dizer um King - Kong, mas foi legal.

Ana Pismel
Enviado por Ana Pismel em 10/05/2007
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