SÍNDROME

Conto

Em estado taciturno e com passos letárgicos desço a rua Álvares de Azevedo, no centro da cidade. Não estou consciente de onde venho e também desconheço o lugar para onde vou, apenas caminho. Talvez eu esteja vindo da biblioteca pública, uma vez que tenho certeza que ali deveria ter entregue alguns livros que outrora eu pegara emprestado. Todavia, é bem provável também que eu esteja vindo do trabalho, pois por tal rua passo todos os dias após findar meus afazeres na galeria.

No que diz respeito ao lugar para onde vou, suponho que eu esteja caminhando em direção à rua Francisco Tolentino, onde pegarei um táxi com vistas a chegar em casa. Outra hipótese, que não descarto de maneira alguma, é que eu esteja caminhando em direção a parte baixa da rua com o objetivo de alcançar a Conselheiro Mafra.

Entretanto, ao encontrar-me no meio do caminho, a saber, no ponto em que a rua é atravessada pela rua Felipe Schmidt, sou quase lançada ao chão por uma série de sujeitos, homens e mulheres, que tresloucados correm em direção ao edifício Dias Velho. Se por ventura, diante dos vários encontrões que recebi, eu não tivesse conservado-me em pé, certamente eu seria pisoteada por aquela bestial massa!

Refaço-me do susto e ponho-me também à caminho da frente do prédio, que, a esta altura, está completamente tomada. Não sei ao certo o que motiva-me a seguir a turba, mas o fato é que eu a sigo. Fosse qual fosse o meu destino, o ponto de táxi ou alguma farmácia na Conselheiro Mafra, é certo que eu me atrasarei.

Dado a quantidade absurda de pessoas que ali estão, de modo algum eu consigo observar o que de concreto está se passando. Observo apenas que os vários transeuntes, os vendedores ambulantes, as vendedoras e os vendedores das lojas, mais alguns polícias que lentamente se aproximam, formam um grande círculo em volta de algo ou alguém que a mim é impossível ver.

Com grande esforço tento me mover em meio a todos. Não obstante meus cuidados, acabo pisando nos pés das pessoas e empurrando aqueles que no momento são para mim um obstáculo a ser vencido. Na medida que vou aproximando-me dos primeiros sujeitos que formam o círculo, começo a observar alguns rostos e suas feições. Fito o rosto de uma senhora que, tendo ao lado uma criança, provavelmente seu neto, nada mais do que terror expressa. A criança, que intenta chutar um pombo próximo, mantem-se indiferente ao que ocorre. Logo atrás da senhora um sujeito alto, de cabeça pequena e com barba grossa ostenta em seu rosto um sorriso irônico, quase debochado. A situação soa-lhe engraçada. Não muito distante do homem de barba grossa está uma outra senhora que fala efusivamente como se estivesse repreendendo e condenando alguém. No seu rosto é possível ver estampado a cólera.

Vencido todos os obstáculos tenho a minha frente aquilo que é o objeto de toda esta agitação. Coberto por um lençol escuro e mergulhado em uma poça de sangue, jaz um corpo. Num misto de terror e espanto quase caio, mas sinto que algumas pessoas atrás de mim sustentam-me e impedem-me de ir ao chão. Recompondo-me, faço uma breve reflexão e concluo: eis aí um suicida! Subiu no alto do Dias Velho e de lá se atirou.

Não obstante estar temerosa e trêmula ainda diante da imagem do corpo, não deixo de notar que parte da perna esquerda do mesmo está descoberta. Movida por instintos que desconheço vou até ao corpo com o intuito de cobri-lo totalmente. Ao aproximar-me noto que no pé descoberto traz o cadáver um sapato mocassim verde que soa-me muito familiar. Em um rápido movimento de olhos fito os meus e constato que ambos, cadáver e eu, calçamos o mesmo modelo.

Mesmo com a advertência de algumas pessoas próximas a mim sinto-me impelida a aproximar-me ainda mais do suicida. Diante da constatação de que usamos o mesmo sapato senti-me na necessidade de ver-lhe o rosto.

Levanto delicadamente com a mão esquerda a parte do lençol que cobre a cabeça do morto e, para minha profunda estupefação, constato que sou eu quem, com o crânio afundado pelo impacto com o chão, está morta, sou eu a suicida.

A meses que, noite após noite, tenho presente em meu sono este terrível sonho. Mais precisamente, ele começou logo em seguida a eu realizar aquilo que de comum acordo eu e o Fernando decidimos. Obviamente que não fora uma decisão fácil, porém, diante da situação, foi e sempre será, tal como em situações similares, a mais fácil solução.

Fernando e eu conhecemo-nos na universidade. Tal como muitos casais que se conhecem, nossa relação deu-se por intermédio de alguns amigos em comum. Ele, estudante de direito e com pretensões de seguir a carreira de diplomata, logo de início encantou-me com seus gestos de polidez, com sua beleza, com sua simpatia e, acima de tudo, com sua inteligência. Eu por minha vez, se não peco em subestimar-me em demasia, ainda hoje desconheço os motivos que o fizeram reparar em mim, pois sempre fui insegura e tímida, carácteres estes que tendem a ofuscar qualquer beleza feminina. Mas o fato é que ambos sentimo-nos atraído um pelo outro.

Hoje estamos juntos a aproximadamente dois anos. Temos uma relação de profundo afeto e respeito. Ambos temos os nossos projetos de vida e de carreira profissional que, de imediato, aniquilam qualquer ideia de casamento e as obrigações que dele são decorrentes. Tenho a pretensão de fazer um curso de especialização em arte renascentista em alguma instituição do exterior. Talvez eu vá para a Itália, mas a França também é uma opção. O Fernando, determinado em entrar para a diplomacia, ocupa todo o seu tempo em preparar-se para os exames do Instituto Rio Branco. Em determinados momentos sou eu quem lhe alerta que é preciso dar um tempo nos estudos, que é preciso descansar, pois do contrário ele chega a ficar quase quinze horas diante de apostilas e livros.

Obviamente que nós fazemos alguns planos, e entre eles estão o casamento e os filhos, mas isso ao amanhã pertence. Seria inimaginável nas circunstâncias atuais termos que arcar com todos os compromissos, por exemplo, que nos traria um filho. É impensável! Sempre recordo-me das palavras da minha mãe quando narrava-me as dificuldades que ela e meu pai enfrentaram diante do meu nascimento. Jovens, sem pretensão de casamento, forçosamente tiveram que iniciar uma relação séria a fim de cuidar de uma criança. Não! Eu, bem como o Fernando, não sou capaz disso!

Contudo, há alguns meses atrás, diante de alguns sintomas que faziam-me crer que eu estava doente, procurei um médico. Relatei-lhe que vinha sentindo-me indisposta, com sucessivas tonturas e com uma indisposição estomacal que, não obstante alguns cuidados, provocava-me náuseas e vômitos contínuos. Não foi sem um profundo espanto que recebi do doutor, após ele fazer alguns exames, a notícia de que eu estava grávida. Naquele momento faltou-me o chão, um desmaio foi inevitável. Senti um misto de terror atrelado ao arrependimento. Todavia, ao médico que me acompanhava aquela reação sugeria-lhe que ali estava alguém que não podia conter-se diante do conhecimento de que tornar-se-ia mãe.

Não foi com menos espanto que o Fernando também recebeu a notícia. Tal como eu, porém, não chegou ao desmaio, mas esteve próximo. Visivelmente deixava transparecer o mesmo terror que eu antes tornara claro no consultório médico. Curiosamente, diante dessa situação é comum observarmos que todos fazem sempre o mesmo questionamento: Como isso foi acontecer? Fernando não reagiu de modo distinto e também emendou: Júlia, como isso foi acontecer?

Ponderamos muito a respeito, mas em momento algum chegamos a sentir-nos jubilosos com a novidade. A mim, bem como ao Fernando, ficava claro que dali em diante nossos destinos tomariam outro rumo. Pensar em estudos no exterior era agora uma grande bobagem, além do que era óbvio que ele teria que abrir mão da carreira de diplomata. Entre todos os sentimentos possíveis aquele que mais nos atormentava era o de arrependimento.

Em nossas conversas, tacitamente, ambos apontávamos para uma solução, porém não ousávamos expô-la de forma clara e objetiva. Por diversas vezes chegamos à conclusão de que iríamos assumir nossas responsabilidades e que então cuidaríamos da criança, independentemente das circunstâncias. Entretanto, logo em seguida nos questionávamos: Mas e a sua carreira, e a diplomacia?; E quanto a você, se realizará caso não faças teu doutorado? Daí então não resolvíamos nada.

Em determinado momento, após ponderarmos muito a respeito da minha gravidez, mas sem ter chego a nenhuma conclusão, foi eu quem sugeriu aquilo que ambos queríamos mas que não tínhamos coragem de expor: E se eu abortar? Em princípio o Fernando se opôs, pois considerava que isso certamente traria risco a minha saúde, ao invés de acabar com uma vida, dizia, tal ato poderia acabar com duas. Porém, o desejo de tornar-se diplomata falou mais alto.

Por intermédio de alguns procedimentos escusos obtivemos alguns medicamentos que, após ingeridos, fizeram-me tirar de dentro de mim aquilo que ambos considerávamos fruto do erro e do descuido. Meu corpo não reagiu do modo que eu esperava diante do processo e foi então necessário procurar um hospital. Acometida por uma infecção uterina fiquei hospitalizada por algumas semanas.

Desde então sinto que essa experiência ocasionou algumas transformações em mim. Meu relacionamento com o Fernando continua o mesmo, afetuoso e norteado pelo respeito e fidelidade, porém não raro sinto-me alheia alheia à vida, as pessoas, ao mundo. Criei hábitos que antes não tinha, tais como o gosto pelo álcool, pelo uso de medicamentos e calmantes. Pensamentos relacionados a minha morte são recorrentes. O sonho no qual me vejo morta é constante, não há uma noite na qual eu não acorde no momento em que levanto aquele lençol escuro e vejo-me ali com o crânio afundado.

É com muita frequência que passo em frente ao Dias Velho e que cogito a hipótese de nele subir até o último andar e dela dar o meu último salto. Ainda não o fiz por medo, acredito. Contudo, mais cedo ou mais tarde tenho certeza que isso acontecerá inevitavelmente. Aquele sonho que tanto me atormenta acabará por tornar-se realidade, porém com a única diferença de que agora não serei mais eu quem levantará o lençol escuro.

Rafael Oliveira, Florianópolis 2014.