Geral na Rua Augusta

Dois rapazes com roupas de tribo estavam caminhando pela Rua Augusta num domingo, sorrindo despreocupados com o resto do mundo, sem medo das nuvens que envelheciam a tarde. Eram iguais a todo mundo, só por serem diferentes. Autênticos.

Simultaneamente, quatro homens estavam subindo a Rua Augusta dentro de um automóvel padronizado, vestiam roupas iguais, coturnos, chapéus e armas. Mal pagos e suportando gritos, trabalhavam dobrado

num turno infinito. Comandos.

No instante em que se cruzaram os olhos, o velho que dava ordens mandou parar e desceu do carro, gritando, exibindo a arma, com todo o Poder do Estado às suas costas, escolheu o que parecia mais pobre e disse:

-Aí seu moleque, aonde é que você vai com este cabelo? Da onde é que você saiu vestido deste jeito? Você agride o meu conceito de estética de penteado, e de moda você não entende nada! - Neste momento o exaltado senhor falava cuspindo perdigotos ao longe, embora estivesse a um palmo do garoto diferente. - O cinza é a cor da estação, vocês estão chamando a atenção!

- É só o meu jeito de expressar a minha individualidade. - Neste momento tomou um tapa na cara.

- Tá querendo dar uma de filósofo seu moleque!- Mais exaltado - Bem hoje que eu já acordei errado e estou trabalhando dobrado? Pra onde é que você está indo? Veio aqui fazer o que? E o que vai fazer mais tarde?

-Eu saí andando sem rumo desde que entrei na rua, só porque era domingo, eu estava sozinho e não quis ficar dormindo. Eu sou livre para isto! - Sua última palavra foi engolida em seco, por causa do soco no estômago.

- Eu não gostei do modo como você falou a palavra livre! Você tá querendo levar uma comigo? Ai se eu te ponho no chiqueirinho... O que é que você faz da vida?

- Eu sou po...- titubeou, pela primeira vez na conversa não soube o que dizer, mas pensou rapidamente e respondeu - Eu sou positivo. - Levou um chute na canela.

- Eu sou p... produtivo. - Levou outro soco.

-Eu sou po... ponderado. - Neste momento foi segurado pelo pescoço com força, quase levantado do chão.

- Eu perguntei qual é o seu trabalho, seu inútil, o que você faz para ganhar dinheiro? - Seus olhos pareciam ensanguentados quando disse isto.

O rapaz pensou, começou com cautela - Eu sou escr... - Parou, pensou mais um pouco - Eu sou escrevente! - Mentiu pela primeira vez ao oficial da lei.

O policial então num segundo, mudou o tom do seu discurso. - Ah, então tudo bem, podem ir. Por que não disse antes? Muito obrigado pela cooperação e boa tarde. - Guardou a arma, virou-se e entrou no carro - Vamos embora senhores, que o dever nos aguarda!

Saíram cantando pneus deixando uma nuvem de fumaça malcheirosa no ar. Foram continuar a sua caçada interminável. Os dois rapazes que ali ficaram, de novo passaram a caminhar despreocupados.

- Você é louco? Se tá querendo apanhar, entra no vale-tudo que pelo menos sobra um troco pra pagar o hospital. Por que aquele papo todo de ponderado? E porque você mentiu sobre ser escrevente? Eu não estou te entendendo...- Disse o calado amigo com cara de menos pobre, logo depois.

- Eu tentei dizer a verdade no início, mas fiquei acanhado, tive medo mesmo, confesso, medo de coisa mais séria. Se eu apanhei só por causa das palavras que escolhi sem esculachar ninguém, imaginei que se dissesse que sou escritor, então eu apanharia mais ainda...

E colocando os dedos ao redor do queixo, acariciando o seu próprio rosto machucado, sorrindo, continuou:

- Se eu já apanhei só por algumas palavras, imagina o que ele faria comigo se descobrisse que eu sou poeta...

Ricardo Selva
Enviado por Ricardo Selva em 03/06/2014
Reeditado em 03/06/2014
Código do texto: T4830360
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