A caveira da pipa

Observo os céus nublados dia após dia, e as noites, a escuridão de minhas memórias. Meus filhos, netos e outros permanecem a espera constante do fim. Pensam que meu silêncio débil, são os primeiros sinais da fragmentação lenta de minha mente. Mas este corpo decadente, ainda persiste, ainda sinto minha alma. Posso ouvi-los em sussurros noturnos, promessas de vida além desta. Uns esperançosos, dizem coisas belas, das quais sei não ser verdade. Outras coisas verdadeiras dessa decadente vida. Eu, um velho senil, considero que estar vivo é insalubre a saúde. Mas ainda a nesse corpo uma fagulha de vontade e desejo inconsciente.

Eu sei de onde vem essa vontade, do medo, o medo amargo e permanente do abismo. Estou à beira do precipício e no início do fim.

Nesta manhã, enrolado aos fios externos da casa, por onde as podia observar através da janela, vi uma pipa muito colorida, de fitas negras que farfalhavam nas correntezas do vento, o céu outonal pálido, frio e cruel a emoldurava. O sol descoloriu suas cores. A chuva descamou suas camadas finas e frágeis. Os ventos levaram suas formas, e assim permaneceu apenas seu esqueleto vazio. Assim como eu, permanecendo apenas as hastes ossudas de meu corpo, levadas pelo tempo.

Mas um dia também fui colorido como ela, possuía um vigor invejável, corria pelos campos com um sorriso no rosto corado. E os olhos muito vivos apreciavam a vida com entusiasmo. Do que foram feitos os meus dias? De pecados, amores, crimes e glórias. Repleta de suaves desejos, de lampejos de felicidade e vagas agonias. De duros rompimentos e efêmeras alianças. E Ainda assim, há vida nestes olhos velhos, conservando o meu brilho fugaz.

Hoje deitado em cama quente e acolhedora, eu espero, eu aguardo pacientemente o terminar deste lampejo de vida, como um relâmpago ao iluminar os céus, e em um breve suspiro tudo findar em lembranças mornas. Quero morar onde moram os versos, eternizados.

Olhos para estas mãos ossudas e pálidas, de rios azuis entre a pele fria. Para meu corpo incapaz, para melancolia nos olhos daqueles que amo. Para o tempo inerte. Para as coisas breves. Para os sorrisos de pena e alegria. Para o definhar de minha matéria. Morrerei como os poetas, com lembranças amadas, cheio de assombro pelo findar das coisas infindáveis. Serei eterno, serei ausente, em uma tranquila distância do que é saudade e do que é amor. Desenrolei de dentro do tempo a minha canção de vida. Escrevi minhas histórias em versos e elegias.

E vejo que no fim, nada somos, além de pipas ao vento.

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 14/06/2014
Reeditado em 14/06/2014
Código do texto: T4844062
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